quinta-feira, 8 de junho de 2017

A VIDA DE SAINT-EXUPÉRY - 44

Jornalista na Rússia (2)

Saint-Ex foi aparentemente muito seduzido pela história contada por Makinsky sobre o camponês e o Diabo, embora isso tenha contribuido muito pouco para reduzir seu mal-estar latente. Na Gare de L'Est havia um carro dormitório à sua espera, mas o esplêndido isolamento que isso assegurou para sua longa viagem terrestre a Moscou trouxe pouco alívio a suas preocupadas meditações.  Por que  estava fazendo essa viagem? O que exatamente estava esperando encontrar? "O que irei procurar", explicou ele mais tarde, "talvez nunca obtenha. Não acredito no pitoresco. Suponho que tenha viajado demais para ignorar o quanto isso pode ser ilusório. Quando um espetáculo nos diverte e nos intriga, é porque ainda o estamos julgando do ponto de vista de um estrangeiro. É porque ainda não entendemos sua essência. Pois o que é essencial em um costume ou um rito ou na regra de um jogo é o gosto que eles dão à vida, é o significado da vida que eles criam. Mas quando eles adquirem esse poder, não parecem mais pitorescos, mas bastante naturais e simples".

Incapaz de dormir, ele se levantou à uma hora da manhã e foi  explorar o resto do trem. Os carros dormitório, bem como os vagões de primeira classe, estavam vazios, lhe recordavam  os luxuosos hotéis da Riviera, que ficavam abertos durante todo o inverno para atender ao capricho de um único cliente,  sobrevivente solitário de uma raça em extinção. Porém os compartimentos de terceira classe estavam cheios, bem como seus corredores, com formas adormecidas que tinha de ter cuidado para não acordar ao passar; mineiros poloneses cujos contratos haviam acabado e estavam de regresso ao lar. Sob a iluminação azulada das lâmpadas noturnas esses corpos informes balançavam e eram empurrados em um sono reparador, ao qual se apegavam desesperadamente, mudando de posição todo o tempo. Até a “hospitalidade de um sono profundo” havia sido negada a esses exilados longe de casa que a cruel onda da Depressão trazia de volta à pobreza que inutilmente haviam tentado abandonar. 

De volta ao vagão dormitório vazio seu sentimento de desânimo foi agravado pela irrealidade do luxo em que foi mais uma vez envolvido. O atendente do compartimento caminhou cambaleante em sua direção  através do corredor do trem para perguntar-lhe a que horas  gostaria de ser acordado. “O que poderia ser mais simples? E ainda assim entre este indivíduo insensível  e eu, sinto os espaços vazios que separam os homens uns dos outros. Nas cidades se esquece o que é um homem. Ele é reduzido à sua função: carteiro, vendedor, o vizinho que o incomoda. É no deserto que se descobre o que é um homem. Já deixei para trás há um tempos o acidente de avião próximo ao pequeno forte de Nouakchott. Era o que mais desejava no meio das miragens trêmulas de sua sede. Mas lá encontrei para me cumprimentar  apenas um velho sargento, perdido por meses entre estas areias e tão comovido com esse encontro que desatou a chorar. E uma vasta noite se abre em que cada um de nós relata sua vida e faz disso um presente de tantas lembranças que através delas se descobre um parentesco humano comum. Dois homens se encontraram e trocam a homenagem de seus presentes com uma dignidade de embaixadores".

Mesmo ali, sacolejando rumo ao leste e ao norte, Saint-Ex ainda estava sob o feitiço do deserto. O mundo começava a ficar mais plano,  com florestas e planícies, cada vez mais niveladas e estéreis, à medida que o trem seguia em direção a Berlim. Tal como a paisagem, o vagão restaurante havia mudado e agora era alemão. Os garçons pareciam mais ágeis, menos preguiçosos, como que se orgulhando de seu trabalho. Saint-Exupéry é levado a perguntar a si mesmo: “Por que, cada vez que se deixa a França, parece que que algo se perdeu? Por que na França essa atmosfera um pouco vulgar de submissão eleitoral? Por que as pessoas são tão desinteressadas por suas funções e pela sociedade como um todo? . . . Puramente simbólicas são aquelas inaugurações na  provincia em que algum ministro, lendo um discurso que não escrevera, em frente à estátua de algum político obscuro que nunca conhecera, derrama uma torrente de elogios que nem ele nem a multidão acreditam uma única palavra. . . .

“Mas, de repente, para além das fronteiras da França, sente-se que as pessoas assumem suas funções. O mordomo do vagão restaurante o serve tão impecávelmente como seu traje. O ministro, quando faz uma  inauguração, toca em pontos que realmente prendem seus ouvintes. Suas palavras atingem o coração devido ao fogo subterrâneo que partilham.

“Sim, mas na França este douceur de vivre, este sentimento de fraternidade universal. . .  Como o cocheiro que lhe faz confidências, ou os prestativos garçons de Rue Royale que conhecem metade de Paris, e todos seus segredos, e ficam satisfeitos em realizar uma chamada telefônica confidencial ou lhe emprestar uns cem francos. . . 

“Tudo é contraditório. O trágico dilema é ter que escolher ou  descobrir para que lado a vida está indo. É o que fico pensando ao ouvir o alemão sentado à minha frente, dizendo-me: 'Unidas, a França e a Alemanha seriam donas do mundo. Por que os franceses temem Hitler, que é um baluarte contra a Rússia? Tudo o que ele tem feito é restaurar às pessoas daqui as prerrogativas de um povo livre. . . Ele representa a ordem . . . ”

Na mesa mais próxima alguns espanhóis, com destino também para  a Rússia, estavam ficando claramente agitados. Saint-Ex podia ouvi-los discutindo Stalin e o Plano Quinquenal e todas as coisas novas lá sendo feitas. “Que mudança na paisagem!”, pensou. “Além das fronteiras da França as pessoas não estão mais interessados na primavera, mas estão, talvez, um pouco mais preocupadas com o destino do homem.”

A Polônia, com suas florestas escuras e perfumadas de pinho, lembrou-lhe as florestas sem grama de Landes, ao sul de Bordeaux, onde uma única faísca, muito mais rápido do que uma centena de cintilantes machados, pode fazer as árvores “em vez de queimar, simplesmente sumirem”. No posto da fronteira Soviética de Niegoreloy teve de fazer as malas e descer, para entrar em um trem com bitola mais larga. Aonde estava a revolução, não podia evitar de pensar, ao ver uma orquestra cigana tocando no imenso bufê da estação. O salão da alfândega também, com as suas paredes ornamentadas de dourados, parecia preparado para um banquete no campo. O único toque proletário que encontrou  foi o corpulento inspetor alfandegário, que vasculhou seus pertences com os dedos sujos de um mujique.

Avaliar esta vasta terra incógnita não era fácil para um novato que não falava uma palavra de russo. Mas à medida que o trem se aproximava de Moscou através da planície, ele não precisou de intérprete para ficar impressionado com os 71 aviões — contou cuidadosamente — ensaiando seus voos sobre a cidade. “E, assim, a primeira imagem visual que recebi foi a de uma enorme colmeia, cheia de atividade sob o seu enxame de abelhas.”

Estas reflexões sobre a sua viagem de trem para a Rússia foram escritas após ter chegado a Moscou. Na plataforma para recebê-lo estava Georges Kessel, irmão de Joseph, que já estava na União Soviética há três meses, escrevendo artigos para o semanário parisiense Marianne. Saint-Ex, que lhe havia escrito uma ou duas semanas antes para pedir que conseguisse um quarto, ficou aliviado ao ser recebido  por um amigo que falava russo, e cuja primeira ação foi chamar um carregador! O terminal de Moscou podia não ter uma orquestra cigana tocando no bufê, mas tinha carregadores e táxis — tal como a Gare du Nord ou a Estação Victoria, em Londres! Então, os revolucionários não eram tão proletários como o mundo capitalista havia sido levado a acreditar. . .

O táxi levou-os para o Savoy, um hotel que Georges Kessel havia escolhido porque era menor e mais tranquilo do que o Metropol ou o Internacional, para onde a maioria dos estrangeiros se dirigiam em massa. A vigilância policial ali era menos intensa, embora os franceses neste momento de harmonia Franco-Soviético fossem relativamente pouco incomodados, em uma época que a Rússia ainda não havia experimentado  o frenesi patológico do primeira grande expurgo partidário de Stalin. Os sinais, no entanto, já começavam a aparecer, e Kessel, que até conseguira convidar a filha de Kamenev para o teatro, já podia sentir que o interlúdio “liberal” estava acabando. 

O próprio Saint-Ex estava prestes a sentir o peso de ferro da pressão do Estado. Embora tivesse chegado na capital russa bem antes do 1o de Maio, chegara atrasado para conseguir um dos cobiçados lugares na Praça Vermelha que permitiriam assistir à parada do dia mais importante. A Embaixada da França, a quem apelou, não pôde fazer nada para ajudá-lo, menos ainda Georges Kessel, que teve que se afastar neste momento crítico para uma viagem de quatro dias a Leningrado. Era um detalhe, mas que deixava bem claro para Saint-Exupéry como era poderosa a implacável burocracia que havia crescido em torno do Senhor do Kremlin, cujas esporádicas aparições em público — como se fosse “um deus sendo trazido para o tabernáculo” — eram restritas aos olhares de espectadores cuidadosamente selecionados. Não havia nada, no entanto, que o impedisse de perambular pelas ruas adjacentes na véspera do grande evento. Estava frio e alguns flocos de neve caíam, mas que não eram suficientes para reduzir o entusiasmo de equipes de camaradas ocupadas em estender bandeiras vermelhas na fachada de prédios que oscilavam ao vento como velas em uma regata. 

Na manhã seguinte, Saint-Ex levantou cedo, decidido a ver pelo menos uma parte  do espetáculo, mesmo que não conseguisse chegar até a Praça Vermelha. Mas não foi suficientemente cedo; logo encontrou a entrada do hotel bloqueada por guardas, estacionados lá e repetindo mecanicamente que as portas seriam abertas — às cinco horas da tarde! Tal como os outros infelizes que não tinham um passe oficial, Saint-Exupéry estava prisioneiro em seu próprio hotel. 

Estava andando de um lado para o outro na recepção como um animal enjaulado quando ouviu um som como se fosse de uma tempestade se aproximando, mais contínuo e proposital, sem interrupções. Um milhar de aviões estava se aproximando da cidade, cobrindo suas cúpulas e prédios e as agitadas multidões com uma gigantesca mão de aço. Para Saint-Exupéry esse desafio sonoro era demais. Ainda havia um toque de travessura nele, e iria se amaldiçoar pelo resto da vida se aceitasse ficar enclausurado enquanto tanta animação estava acontecendo lá fora! No Lycée Saint-Louis ele havia utilizado um túnel e um bueiro convenientemente bem situados; dessa vez usou uma janela e uma varanda que por sorte não era vigiada. 

Num instante já estava na rua; estranhamente vazia, exceto por algumas crianças brincando despreocupadamente. Como se fosse uma grande onda que ganhasse volume, à medida que avançava, todo o resto da população havia sido tragada inapelavelmente em direção à enorme amplidão da Praça Vermelha. Por alguns minutos Saint-Exupéry ficou encostado a uma parede, observando no alto as formações disciplinadas de Vs metálicos que rugiam sobre sua cabeça tão implacavelmente como um laminador de aço. Em seguida passou por várias ruas desertas, mas todas as suas tentativas de seguir em frente foram barradas por guardas que impediam o acesso ao mausoléu de Lenin. Finalmente chegou a uma avenida onde uma multidão interminável, uma corrente humana com mais de um quilômetro de extensão, lentamente caminhava em direção ao Kremlin. Abrigados em pesados casacos, arrastavam-se como se fosse um funeral, a despeito do toque alegre de suas bandeiras vermelhas. De repente começou o som de música; incomodado com o engarrafamento humano, um músico de uma das bandas havia começado a tocar seu acordeão. Outros também começaram a tocar, e em num piscar de olhos essa multidão encapotada em roupas pesadas dissolveu-se em grupos de dançarinos afogueados, saltando e rodopiando para afastar o tédio de uma manhã gelada. Saint-Ex lembrou-se do Dia da Bastilha em Paris. “Um estranho me puxou e me deu um cigarro. Outro me ofereceu acendê-lo. A multidão estava feliz. . . . De repente um tremor perpassou a massa, os músicos levantaram seus instrumentos, as bandeiras foram hasteadas, e as fileiras refeitas. Um líder de grupo deu um toque na testa de uma jovem para que ela reassumisse seu lugar. Foi o último gesto individual, o último gesto familiar. Todos ficaram novamente sérios, à medida que a marcha em direção à Praça Vermelha recomeçava. A multidão de novo se tornava compacta, para se apresentar à frente de Stalin.”

Redigida de forma apressada para seus padrões, a primeira matéria de Saint-Exupéry foi transmitida por telefone no dia seguinte e publicada na edição de 3 de Maio do Paris-Soir na primeira página, ao lado de uma manchete anunciando a iminente assinatura de um Pacto Franco-Soviético de Não-Agressão. Em geral, foi um esforço louvável, embora alguns leitores talvez tenham ficado surpresos com algumas das especulações do autor sobre o futuro. Depois de mencionar o fato de que as barbas e os rostos peludos haviam desaparecido na Rússia, proibidos por um simples decreto do Senhor do Kremlin, Saint-Exupéry completava: “Dá a impressão de que quando atingir as vestimentas, a varinha mágica do Plano irá subitamente alegrar as ruas de Moscou e substituir as boinas e roupas de trabalho que ainda lhe dão um toque sombrio. E não parece nada paradoxal imaginar que um dia Stalin, das profundezas do Kremlin, irá decretar que um bom e honrado proletário deva se arrumar depois do trabalho. A Rússia, nesse dia, irá jantar em roupa de gala. 

Demorou quase dez dias até que Saint-Exupéry se dispusesse a colocar ideias no papel novamente. Será que sentiu que esse primeiro artigo havia sido um pouco otimista demais? É possível, embora Georges Kessel, após seu retorno de Leningrado, estivesse mais inclinado a achar que fosse simplesmente uma sub-reptícia indolência. Temporáriamente livre das preocupações domesticas que tinha em Paris, Saint-Ex parecia disposto a desfrutar de alguns dias de malandragem. À mesa, espalhava uma grossa camada de manteiga em tudo que comia, e quando Kessel fez cara de surpresa, seu amigo explicou que era devido ao fato de que seu médico havia recomendado que ficasse longe do pão — o que aliado à falta de exercício era responsável por seu peso cada vez maior. Como Kessel podia ver, estava seguindo à risca a recomendação: o suculento pão preto integral ficava de lado, enquanto Saint-Ex saciava seu enorme apetite com cem gramas de manteiga. Havia algo na atmosfera de Moscou, explicou ele a um incrédulo Kessel, que de alguma forma não  o incentivava escrever. Sentia muito a falta de cigarros — como poderia escrever sem fumar? — e quando percebeu que essa desculpa estava começando a perder credibilidade, se dedicou a devorar uma barra de chocolate, que lhe provocou uma enxaqueca que tornou qualquer trabalho impossível.

A agenda de Saint-Exupéry, claro, não era livre. Os russos, que estavam decididos a impressionar seu visitante, os convidaram a assistir juntos uma demonstração de salto de paraquedas seguida de um banquete. 

“Suponho que você sabe,” disse Kessel a ele durante a refeição, “que você vai ter de fazer um discurso”.

“Um discurso?” Saint-Ex ficou pasmo. Se havia uma coisa que ele odiava, era fazer discursos. 

Mas Kessel insistiu. Afinal, ele era um escritor famoso, e seria lógico, não? A ideia tirou todo o apetite de Saint-Exupéry. Quase não tocou no caviar nem nos outros pratos, e ficou durante mais de uma hora frenéticamente tomando nota de ideias em pedaços de papel, enquanto Kessel mantinha um rosto impassível. O banquete terminou,  como esperado, com brindes de vodca, mas a ninguém ocorreu pedir a Saint-Exupéry que fizesse uma locução em francês. 

Saint-Ex levou na esportiva a brincadeira, embora seu estômago faminto não aceitasse tão bem esse jejum. Mas um ou dois dias depois ele se vingou à mesma altura. Kessel havia conseguido acumular um estoque razoável de cigarros ingleses, que Saint-Ex eventualmente fumava em último caso, já que não podia satisfazer seu desejo desesperado por cigarros americanos, que preferia infinitamente mais. Certa noite disse a Kessel: “Vamos jogar uma partida de xadrez.” Sentaram-se ao tabuleiro e dez minutos depois Saint-Exupéry foi brilhantemente derrotado com um xeque-mate. Saint-Ex parecia abatido. “Muito bem,” disse ele, “vamos jogar mais uma”. Uma segunda partida foi começada, e tal como a primeira, terminada com uma rápida derrota. 

“Vamos então jogar uma terceira,” disse Saint-Exupéry, “mas dessa vez vamos torná-la mais interessante”.

“O que quer dizer?” perguntou Kessel.

“Bem, vamos combinar – se você vencer, eu devo te dar um maço de cigarros ingleses. E se eu vencer, você me deve um maço de americanos.”

“Topado,” disse Kessel, satisfeito com a certeza de aumentar seu estoque de Craven A e de Player.

Para seu espanto, seu medíocre oponente de repente pegou fogo. Venceu o terceiro jogo, depois o quarto, e mais o quinto. Quando o torneio acabou, descobriu-se devendo mais de uma dúzia de maços de cigarro americanos — numa cidade em que eles eram quase tão raros como diamantes. Foi a vez de Saint-Ex dar uma boa risada. O “medíocre jogador” era na verdade um craque, e para pagar sua dívida o aflito Kessel foi obrigado a encher os bolsos com Camels e Cherterfields, discretamente surripiados das bandejas e caixas de uma recepção na Embaixada Americana.

Com a testa novamente envolta na fumaça de fumo de Virginia, Saint-Ex podia finalmente sentar para escrever seu segundo despacho. Tratava da sua viagem de trem através da Alemanha e da Polônia; e por uma extraordinária coincidência, essa narrativa triste sobre os mineiros poloneses, apinhados como gado nos vagões de terceira classe, foi publicada na mesma edição do Paris-Soir que trazia a notícia da morte do Marechal Pilsudski. O texto dessa vez era claramente pessimista, em flagrante contraste com o que Saint-Exupéry havia escrito sobre o Primeiro de Maio em Moscou; mas a matéria, talvez exatamente porque era mais densa, era incompáravelmente superior. O que começava como um artigo se tornava, ainda antes da metade, uma elegia: como a descrição de um dos mineiros poloneses cochilando em um banco de madeira no compartimento despojado da terceira classe: 

         “Seu crânio era calvo e pesado como uma pedra. Um corpo encolhido num sono desconfortável, envolto em roupas de trabalho puídas e furadas. Ele parecia um monte de argila — semelhante aqueles maltrapilhos que a gente vê à noite deitados em bancos de metrô. E pensei “O âmago do problema não é a pobreza, a sujeira, a feiura. Mas esse mesmo homem e essa mesma mulher um dia se encontraram. E ele sem dúvida sorriu para ela. E sem dúvida, também, trouxe-lhe flores, depois do trabalho. Tímido e sem jeito, talvez tenha ficado aflito com a possibilidade de ser recusado. Mas a mulher, com um charme natural, e sabendo que era graciosa, aproveitou para prolongar o suspense. E o homem, hoje reduzido a uma máquina de cavar ou perfurar, sentiu na alma uma deliciosa ansiedade. O grande mistério é como ele se havia se tornado esse monte de argila. Através de que terrível molde haveria de ter passado, que o havia marcado como uma prensa? Uma corça, uma gazela, um animal envelhecido conservam sua graça. Mas porque essa massa humana deveria ser tão desfigurada?. 

E pouco adiante: 

      “Sentei-me em frente a um casal. Uma criança havia conseguido se aninhar entre os dois e dormia. Em seu sono ele se virou e pude ver seu rosto iluminado pela pequena lâmpada azulada. Oh, que rosto adorável! Desse casal havia nascido um fruto dourado. Desses farrapos pesados e gastos havia brotado um triunfo de encanto e graça! Me inclinei sobre o rosto liso, sobre os lábios entreabertos, e pensei: ‘Eis o rosto de um músico, esse é o rosto de Mozart quando criança, eis aqui uma linda promessa de vida.’ Os pequenos príncipes das lendas não eram diferentes dele. Abrigado, cuidado, cultivado, o que ele poderia se tornar? Quando em virtude de alguma mutação uma nova rosa nasce nos jardins, todos os jardineiros se comovem. A rosa é separada, a rosa é cultivada, é preferida. . . . Mas não existem jardineiros de homens. Mozart criança será marcado tal como os outros pela prensa. Mozart irá vibrar ao som de música vulgar em cafés concerto fétidos. Mozart está condenado. . .”

A primeira edição do dia do Paris-Soir estava indo para impressão enquanto Saint-Exupéry ainda estava ditando seu texto em Moscou, e a pressão sobre a datilógrafa em Paris era intensa acima do normal. E quando, após notar uma pausa no ruído da datilógrafa que durou mais do que o habitual, Hervé Mille entrou na sala para ver o que estava impedindo que prosseguisse a página seguinte, encontrou a pobre moça em lágrimas.

“Que aconteceu?” perguntou.

“Não consigo continuar,” desabafou ela, “Não consigo. . . É bonito demais, bonito demais. . .”

Saint-Ex, no outro lado da linha, provavelmente não percebeu o que estava ocorrendo; mas seu primeiro leitor — nesse caso, ouvinte — só conseguiu ir até o fim com um lenço para segurar as lágrimas. 


TRADUÇÃO VIRGILIO FREIRE

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