O Simoun
Era
praticamente inevitável que o ano de 1935 terminasse com um desastre para
Saint-Exupéry. Fora um ano marcado por uma espécie de frenesi, trabalhando sem
cessar mas sem conseguir sanar seus problemas financeiros, tendo dificuldades
para pagar os 650 francos do aluguel do pequeno apartamento de quatro aposentos
que ocupava desde 1934, no número 5 da rue de Chanaleilles. Estava esgotado por
duas longas missões: uma a Moscou, para o Paris-Soir;
e outra pelo Mediterrâneo, ao comando de seu avião particular, para uma série
de palestras patrocinadas pela Air France. Durante os três meses anteriores à sua
primeira tentativa de bater um recorde, percorreu pelo menos 15 mil quilômetros
de avião para visitar os amigos ou a família em Ambérieu ou na Riviera. Ao
mesmo tempo terminava o roteiro de Anne-Marie,
redigia diversos artigos de jornal, preparava outros para a revista da Air
France e patenteava sua primeira invenção.
Sentia
a mesma necessidade de escrever de sempre, e dedicava-se a essa atividade nos
cafés e restaurantes da moda, como Les Deux
Magots ou a Brasserie Lipp, onde
os amigos o encontravam cercado de montículos de rascunhos rejeitados e
amassados. Para trabalhar, preferia esses estabelecimentos a seu apartamento,
que um de seus amigos, o escritor pacifista Henri Jeanson, qualificava de
“gaiola para moscas”.
A
desordem natural de Saint-Exupéry acentuava ainda mais a exigüidade de sua
residência, onde sua concentração era perturbada constantemente pelas idas e
vindas dos amigos de Consuelo. Ele continuava a levar uma vida social agitada e
os amigos estavam preocupados com sua má aparência e sua saúde ameaçada pelo
excesso de álcool e por uma péssima alimentação. Engordara, sentia-se cansado e
queixava-se constantemente do fígado. Seu caótico estilo de vida, que o levava
a se ausentar durante semanas, foi causa de numerosas brigas com Consuelo. Ele
replicava acusando-a de negligenciá-lo e de gastar muito em roupas, jóias ou
jantares com amigos. No entanto, esse clima foi só indiretamente responsável
pela decisão de Consuelo de se mudar no outono de 1935, para se instalar no
hotel Pont-Royal, perto dos escritórios da Gallimard, em Saint-Germain-des-Près.
As
contas não pagas acumulavam-se e já não era possível viver no apartamento. O
gás, a energia elétrica e o telefone foram cortados, Saint-Exupéry foi
processado por não pagar o aluguel, e o fisco impôs o seqüestro dos móveis, a
fim de cobrir impostos atrasados. Até mesmo o cachorro, um pequinês que Antoine
dera de presente a Consuelo, não podia mais ser alimentado, e Antoine teve de
confiá-lo à zeladora, que só o aceitou após ter recebido como penhor seu
relógio de ouro. Antoine reagiu à penúria financeira gastando ainda mais e, em
abril de 1934, antes da confirmação de seu emprego na Air France, encomendava
um avião de turismo, um Farman 402, por 20 mil francos. Em setembro de 1935,
asfixiado pelas dívidas, recebia um Caudron 630 Simoun, que custara dez vezes o
preço do Farman, e empreendia seu giro mediterrâneo a bordo do aparelho.
O
Simoun de dois lugares era tecnicamente um dos melhores aparelhos do mundo, uma
espécie de Bugatti dos ares. A partir de 1930, a companhia Caudron começara a
construir aviões equipados com motores Renault, cujo rendimento ultrapassava
amplamente o dos motores concorrentes. Em 1935, o último modelo conseguia
manter uma velocidade de cerca de 280 quilômetros por hora durante 1.200
quilômetros, confirmando suas chances na corrida internacional aos recordes de
longa distância. O sucesso do Simoun também tinha retornos comerciais, servindo
de cavalo de batalha à Air Bleu, um serviço francês de correio interno
inaugurado por Beppo de Massimi e Daurat após a dissolução da Aéropostale.
No
entanto, um único Simoun ocupa um lugar de honra na literatura. Trata-se do
modelo creme e vermelho-vivo, com a matrícula F-ANRY, equipado com um motor de
180 cavalos, com o qual Saint-Exupéry tentou bater o recorde de vôo entre Paris
e Saigon antes de se espatifar no deserto líbio, onde quase morreu de sede. O
prêmio oferecido a quem superasse a distância em menos de 99 horas era de 50
mil francos, suficientes para cobrir suas dívidas mais urgentes. Também assinou
um contrato para uma série de artigos a serem publicados no jornal Intransigeant, a pedido do redator-chefe
René Delange, um de seus futuros biógrafos.
Com
o sucesso fenomenal de Terra dos Homens,
no qual relatou essa aventura quatro anos mais tarde, Saint-Exupéry finalmente
ficou rico, porém o resultado imediato dessa expedição abortada rumo a Saigon
foi aniquilar brutalmente suas esperanças de independência financeira. No
capítulo “No meio do deserto”, dedica
cerca de sessenta páginas do livro ao acidente. Não menciona, porém, a apressada
preparação da perigosa viagem. Durante a leitura do relato, quando o Simoun
capota no deserto após vinte horas de vôo, a apenas 3.700 quilômetros de Paris,
tem-se a impressão de que uma força natural maligna interveio sorrateiramente
para desviar o piloto de seu trajeto e fazê-lo perder a altitude necessária.
Na
verdade, os preparativos realizados muito rapidamente antes da data-limite de
participação estavam desde o início destinados ao fracasso, e pareciam um jogo
de pôquer mal preparado. A expedição foi planejada sem levar em conta o bom
senso, sob as recriminações de Consuelo, que se opunha com toda razão a essa
viagem insensata. No relato de Saint-Exupéry, sua mulher (cujo nome não é
citado) é mencionada apenas uma vez ao interromper uma importante reunião
técnica, pouco antes da partida, para entregar ao marido uma sacola com uma
navalha e uma camisa limpa. No entanto, uma leitura atenta do capítulo revela o
alívio que deve ter sentido Saint-Exupéry ao se sentar na cabine do Simoun,
descrita em Terra dos Homens como um outro mundo, onde o piloto se sentia em
casa. “Com o avião, deixa-se para trás as cidades e seus contadores, e
reencontra-se a realidade.” Talvez essa tenha sido a mais simples confissão de
seu fascínio pela aviação.
No
momento em que subiu no seu Simoun no aeroporto de Bourget, na época o maior de
Paris, estava escapando do ambiente louco do hotel Pont-Royal, que servira de
quartel-general para os preparativos do vôo. Com exceção da conversa com o
meteorologista, o livro não narra nada sobre os engraçados episódios anteriores
à decolagem. Antes de se instalar no Simoun, Saint-Exupéry demonstrara apenas
um interesse distraído pela organização que precedia a partida. Os controles
mecânicos não o apaixonavam e, no último minuto, a companhia de Didier Daurat,
a Air Bleu, realizou as verificações mecânicas sob o controle de André Prévot,
mecânico de Antoine. Como não queria prejudicar sua concentração na elaboração
de um complicado plano de navegação, Saint-Exupéry confiou essa
responsabilidade a um amigo, Jean Lucas, antigo piloto da Aéropostale. Este
revelou mais tarde que suspeitava que Antoine, ao tentar bater o recorde, na
verdade desejava apenas escapar de seus aborrecimentos parisienses. Também
tinha a intenção de reencontrar a irmã Simone em Saigon, onde ela trabalhava
nos arquivos locais, bem como a de passar algum tempo visitando a Indochina.
“Nas
suas numerosas estadias em Port-Étienne, sempre o vi relaxado, feliz, sem
preocupações, com uma euforia que só sentia naquela região”, contava Lucas,
recordando a época em que Saint-Exupéry fora responsável pela base africana.
“Em Paris, ele não era o mesmo. Continuava gargalhando como uma criança. Mas
sempre estava mais ou menos encurralado por preocupações de todo tipo.”
A
preparação dos mapas para essa viagem de 10 mil quilômetros, que geralmente era
uma incumbência do piloto, exigiu de Lucas uma noite inteira de trabalho no
quarto de Consuelo. A jovem não parava de conversar, o que o exasperava e
desconcentrava. Quando ele lhe pediu que se calasse, conta-se que ela respondeu
com uma bofetada, e ele replicou agarrando-a sob o braço e dando-lhe uma surra
no traseiro como se fosse criança. “Isto é o que eu chamo de um homem”, teria
dito Consuelo, segundo Marcei Migéo, um amigo que Saint-Exupéry conhecera na
força aérea.
Provavelmente
Antoine não presenciou esse incidente. O quarto de hotel era o centro de um
contínuo tumulto, pois seus amigos entravam e saíam para desejar-lhe boa sorte
e dar-lhe conselhos, impedindo assim um estudo sério de todas as eventualidades
do vôo.
Essas
visitas contradizem uma versão bastante defendida, segundo a qual Saint-Exupéry
mantinha ciumentamente seus amigos em compartimentos separados. Na verdade, os
que vieram cumprimentá-lo antes da partida tinham sido testemunhas de diversos
períodos- chave de sua vida. Enquanto Lucas pertencia ao grupo da Aéropostale,
Joseph Kessel e Gaston Gallimard eram figuras centrais de seu círculo
literário. Um amigo que Antoine conhecera no Liceu Saint- Louis, Henry de
Ségogne, célebre alpinista, teve a honra de conduzi-lo a Le Bourget no dia 29
de dezembro, às 4 horas da manhã. Entre os que ficaram esperando no frio a
partida prevista para as 7 horas encontravam-se Didier Daurat e Léon Werth, o
escritor anarquista ao qual Saint-Exupéry dedicaria O Pequeno Príncipe sete
anos mais tarde.
Durante
os dias de angústia posteriores ao acidente, o hotel Pont-Royal transformou-se no
quartel-general da crise. Nele havia uma aparência de reunião familiar, da qual
faziam parte Yvonne de Lestrange, Marie de Saint-Exupéry e uma multidão de
visitantes ávidos por notícias. Marie chegara apressadamente de Cannes no dia l2
de janeiro e passava a maior parte do tempo orando pela vida do filho.
Certamente não ficou mais tranqüila ao ouvir a descrição dos minutos que precederam
a partida. Antoine, caindo de sono após várias noites ocupadas pelos festejos
de fim de ano, tinha esquecido de trazer as garrafas térmicas de café
destinadas a mantê-lo acordado nos quatro dias da prova. No último minuto, duas
garrafas térmicas foram compradas numa farmácia de plantão e enchidas num bar.
O CAUDRON-SIMOUN de Saint-Exupéry |
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