Quando Guillaumet recuperou as forças, foi organizada uma
festa em seu apartamento de Buenos Aires. A exuberância demonstrada por Saint-Exupéry
naquela ocasião ainda era lembrada diversos anos mais tarde. Ele entoou canções
obscenas a todo volume, interrompendo-se apenas para perguntar ao amigo se não
tinha percebido aviões em sua busca. Pelo menos duas vezes o piloto acidentado
ouvira um avião dar voltas acima das montanhas, e a alegria de Saint-Exupéry aumentou
quando ficou evidente que ele estava pilotando um dos aviões.
Henri e Noëlle Guillaumet tinham se casado no ano
anterior e, ao raiar do dia, tiveram de expulsar Saint-Exupéry para ficarem um
pouco tranquilos. Antoine os visitava praticamente todas as noites,
acompanhando-os ao cinema, ao night-club
ou ao parque de diversões. Às vezes cochilava no divã, e era preciso ajudá-lo a
descer para encontrar um táxi. Uma vez em que desceu sozinho foi encontrado
dormindo no elevador, algumas horas mais tarde.
Os Guillaumet também tiveram de se acostumar com uma longa
série de suas namoradas. O Saint-Exupéry de Correio
Sul, que não acreditava em encontros fortuitos, descobrira as alegrias da
celebridade numa profissão que atraía multidões de admiradoras. Seu título
aristocrático e seu sucesso literário aumentavam seu charme, mas todos os
pilotos eram admirados tanto quanto os ases do mundo esportivo. Embora não
apreciasse de forma alguma a comparação com os toureiros, os aviadores possuíam
a mesma aura de coragem e sangue frio, que Saint-Exupéry explorava para
aumentar a lista das que chamava de suas “pequenas”, suas conquistas de solteiro.
O intenso sentimento de fraternidade sentido durante o
salvamento de Guillaumet reforçara sua convicção de que não fora feito para as
responsabilidades de chefe, preferindo ser apenas um membro do grupo. Seu cargo
de diretor do tráfego, devendo sancionar casos de atraso ou acidente, mesmo
quando a culpa não era do piloto, o distanciava de seus homens. Em Voo Noturno, Saint-Exupéry critica implicitamente
seu alter ego, o inspetor Robineau, que sente prazer em exercer o poder
delegado por Rivière sobre a tripulação. Entrelinhas, admite que as decisões
que tomava eram apenas a aplicação tolamente repetitiva da severidade
cuidadosamente estudada de Rivière.
Ao multar os
pilotos que infringiam as instruções, Robineau justifica suas decisões pela
necessidade de obedecer ao regulamento da linha. Em compensação, Rivière
entende que regras estritas são indispensáveis. Para os leigos, elas parecem
tão absurdas quanto os rituais religiosos, mas, segundo Rivière, elas “formavam
homens”. Voo Noturno é um discurso em
favor de uma autoridade como a dos jesuítas e de uma doutrina rígida de mando;
por isso parece paradoxal que Saint-Exupéry tenha evitado a responsabilidade,
preferindo ser visto como simples soldado e não como oficial. Mesmo durante a
guerra, tendo mais idade que a maioria dos pilotos, recusou todas as ofertas de
comando.
É evidente que sua extrema ansiedade, que frequentemente lhe
provocava excessivos remorsos ou dúvidas, deve ser uma das razões de sua
atitude. Um dos raros exemplos conhecidos de sanção tomada por Saint-Exupéry,
com exceção das punições provavelmente fictícias infligidas por Robineau, é
atribuída a Rivière, aliás, Daurat, em Voo
Noturno, como se Antoine não pudesse assumir pessoalmente a ação. Um
mecânico chamado Roblet é dispensado por incompetência por Rivière, embora
tenha trabalhado vinte anos na aeronáutica e construído o primeiro avião que
voou na Argentina. Rivière se pergunta se não foi injusto ao demitir esse
homem, até que os controladores de voo comentam a chegada de um avião cujos
instrumentos deixaram de funcionar após uma montagem malfeita atribuída a
Roblet.
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Didier Daurat, Diretor de Operações da Aéropostale, veterano da Primeira Guerra, mentor de Saint-Exupéry, e personagem em vários de seus livros. |
Roblet realmente existiu e foi obrigado a pedir demissão
pelo próprio Saint-Exupéry, segundo Paul Descendit, que foi mecânico-chefe na
Latécoère. Ele justificou a demissão considerando Roblet fisicamente incapaz de
efetuar seu trabalho, que exigia “ser jovem, robusto e gozar de boa saúde”. É
provável que outras decisões, baseadas em regulamentos severos, tenham
suscitado tenazes ressentimentos. Uma
vez Saint-Exupéry aplicou uma multa de 200 pesos a um piloto de correio por ter
vindo socorrê-lo após uma aterrissagem forçada. Se o aviador tivesse seguido as
instruções de Daurat, teria de encaminhar sua carga de correio à base mais
próxima antes de ajudar seu chefe.
Saint-Exupéry teria podido eventualmente aceitar a justa
demissão de um elemento duvidoso da rede aérea, porém nunca teria suportado,
como Daurat, forçar as tripulações a assumirem riscos enormes, por mais nobres
que fossem. O acidente relatado em Voo Noturno está inspirado em outro, real,
ocorrido na baía de Montevidéu em maio de 1930, que custou a vida de um piloto
de Latécoère, Élysée Négrin. Outras três pessoas lá encontraram a morte, entre
elas Julien Pranville, antigo assistente de Daurat em Toulouse, enviado para
dirigir as operações na América do Sul.
Nos quinze meses anteriores, Daurat perdera seis pilotos
e três encarregados de rádio, mas esse acidente era particularmente de mau augúrio.
Pranville chegara a Natal, Brasil, para receber a primeira conexão aérea por
hidravião realizada por Mermoz e organizada por Daurat, entre a África e a
América do Sul. O acidente provocou o questionamento do novo serviço, mas
Daurat não ficou perturbado. Manteve o voo inaugural, que saiu do Senegal em 12
de maio de 1930, carregado com 150 quilos de correspondência vindas de Toulouse
num tempo recorde de 25 horas.
Jean Mermoz pilotava o Latécoère 28, Comte de la Vaulx,
num dos voos de longa distância mais importantes da história da aviação,
iniciando assim a conexão correio e passageiros sobre o Atlântico sul. O voo
inspirou um trecho espetacular de Terra
dos Homens, no qual Saint-Exupéry relata a descrição de Mermoz dos
gigantescos tornados marinhos elevando-se na superfície do oceano Atlântico
como os negros pilares de um templo.
Apesar das perturbações climáticas ameaçadoras, o correio
foi transportado por etapas da França à África, sobre o Atlântico e a América
do Sul, para chegar à costa do Pacífico apenas quatro dias e meio após a
decolagem de Toulouse. O acontecimento provocou um grande alvoroço na América
do Sul, onde os aviadores da Aéropostale foram celebrados como heróis
folclóricos em canções populares.
Seis anos mais tarde, Saint-Exupéry foi entrevistado por
um jornal francês, La Flèche, após a
morte de Mermoz em outra travessia do Atlântico. Nesse artigo existe uma frase
notável. Referindo-se às façanhas daquele período, Saint-Exupéry dizia que
todos os pilotos sentiam ter realizado um grande esforço e cumprido um dever
quando conseguiam completar com sucesso um voo particularmente perigoso.
“Mermoz sentia isso mais do que ninguém”, acrescentou. “Possuía uma espécie de
júbilo interior, um sentimento confuso porém seguro de que nós, enquanto
homens, tínhamos nos tornado mais nobres.”
Saint-Exupéry não pode desempenhar um papel ativo no
recorde entre o sul da França e o Pacífico por estar preso a seu escritório de
Buenos Aires, morrendo de inquietação pelos longos silêncios quando o contato
com o rádio era interrompido. Para ele, o “júbilo interior” limitou-se a
felicitar os colegas pela proeza. Após essa experiência, deixou de ambicionar
escalões hierárquicos mais altos. Sonhava apenas com voltar à rotina de piloto
de correio. Os meses posteriores deram à sua vida pessoal, bem como à sua
carreira profissional e literária, um curso acidentado, no qual se originaram
várias das decepções de seu turbulento casamento com Consuelo Suncin.
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Antoine e Guillaumet diante do avião |