quarta-feira, 31 de maio de 2017

O PEQUENO PRÍNCIPE - 7

Ó meu pequeno príncipe! Pouco a pouco eu passei a compreender melhor a sua vida melancólica... Por um bom tempo você encontrava sua única distração no prazer silencioso de contemplar o pôr do sol. Eu aprendi este novo detalhe na manhã do quarto dia, quando você me disse:  

                Gosto muito do pôr do sol. Venha, vamos ver um agora.  

                Mas ainda é cedo, devemos esperar.  

                Esperar? Pelo quê?  

                Pelo pôr do sol. Nós devemos esperar a chegada da tardinha.  

                Primeiro você pareceu inteiramente surpreso; mas logo após, passou a rir de si mesmo, e me explicou:  

                Eu sempre me esqueço de que não estou mais em casa!  

                De fato, todos sabem que quando é meio-dia nos Estados Unidos, o sol está se pondo na França. Se acaso você pudesse voar até a França num único minuto, você pularia diretamente da visão de um meio-dia para a visão de um pôr do sol. Infelizmente a França fica muito distante para que algo assim seja possível.

                Mas em seu planeta pequenino, meu pequeno príncipe, tudo o que precisa é mover a sua cadeira alguns passos para o lado. Lá, você pode contemplar ao fim do dia e a queda do crepúsculo sempre que assim desejar...  

                Um dia, você me disse, eu vi o sol se pôr quarenta e quatro vezes!  

                E, um pouco depois, ainda acrescentou:  

                Você deve saber que quanto mais estamos tristes, mais gostamos de assistir ao pôr do sol...  

                Você estava assim tão triste naquele dia em que viu quarenta e quatro vezes ao sol se pondo?  

                Mas o pequeno príncipe não me respondeu.

A VIDA DE SAINT-EXUPÉRY – 36



SAINT-EXUPÉRY E O BRASIL

            Durante os anos em que morou na América do Sul, em Buenos Aires, Saint-Exupéry voava regularmente entre diversos pontos do Brasil. Sua passagem ficou registrada principalmente em Florianópolis, em Santa Catarina, e Petrópolis, no Estado do Rio de Janeiro.

            No dia 7 de maio de 1928 o piloto Henri Delaunay faz uma aterrissagem forçada em Florianópolis com 2 passageiros e o avião fica em chamas. Delaunay é hospitalizado na cidade, e sua estadia dura dez meses de internação, devido às graves queimaduras. Durante esse período, os pilotos da Aéropostale sempre fazem uma escala em Floripa para visitar o amigo e colega. Saint-Exupéry é um desses amigos, e pernoita na casa próximo à praia que a empresa comprou. Como sempre afável, sai para conversar com os pescadores, que por não conseguirem pronunciar seu nome em francês, o chamam de “Zéperri”. Próximo dali, a ilha de Campeche deve seu nome aos franceses pilotos, que a chamavam de “Champ-de-Péche” (Campo de Pesca).

            Essa história está bem narrada no documentário “Zéperri” que você assiste aqui. Vale a pena, pois conta muito mais do que a passagem de Saint-Ex pelo Brasil. O episódio sobre o Brasil pode ser visto a partir de 21 minutos do documentário, caso você queira ir direto a ele – mas vale a pena ver tudo.

            Sua passagem por Petrópolis é narrada de forma agradável em matéria do jornal O Globo de 04/04/2014 que reproduzimos abaixo.

            PETRÓPOLIS - De repente, o francês Antoine de Saint-Exupéry - piloto e futuro autor de “O Pequeno Príncipe” - entra pela porta da sala, acompanhado de seu melhor amigo, Henri Guillaumet. Marcel Reine, dono da bela casa, no número 102 da Estrada do Ribeirão Grande, em Itaipava, recebe-os com euforia e já planeja os passeios que farão nos próximos dias ao lado dos conterrâneos Jean Mermoz e Paul Vachet. Cenas bem parecidas com esta devem ter ocorrido entre os anos de 1928 e 1932, período em que os cinco pilotos da então companhia francesa de correio aéreo Aéropostale frequentaram Petrópolis.

            Eles participaram da grande empreitada do industrial Pierre Georges Latécoère, que, ainda em 1918, decidiu transformar os aviões utilizados na Primeira Guerra Mundial (1914-1918) em aparelhos que levariam o correio da França para a África e a América do Sul. O primeiro voo teste para o Brasil ocorreu sete anos depois, a bordo de um Breguet, que percorria 150 quilômetros por hora.

A imagem é de uma aterrissagem de um dos aviões da Aéropostale na Praia Grande, em Santos. 

            - A aviação comercial estava começando aí. Os Breguets eram como calhambeques voadores! - brinca a presidente da Associação Memória Aéropostale no Brasil (Amab), Mônica Cristina Corrêa. - Mesmo assim, foi uma imensa revolução. Até 1920, levava dois meses para uma carta ir de Paris a Buenos Aires. Com a Aéropostale, isso passou a ocorrer em apenas oito dias. Era como um e-mail para a época.

            Foram montadas 11 escalas no Brasil, incluindo a do Campo dos Afonsos, no Rio de Janeiro. Quando tinham algum tempo até a viagem seguinte, os cinco pilotos subiam a Serra para fugir das altas temperaturas cariocas. Para a casa de Reine, chegaram a levar até algumas moças, que tinham entrada proibida nas bases aéreas.

            Hoje, o imóvel pertence a José Augusto Wanderley, que o mantém quase como um santuário de “O Pequeno Príncipe”, com livros e objetos que fazem referência ao autor, a seus amigos e à obra - lançada apenas em 1943, inspirada nas aventuras vividas por eles. Em 9 de maio, Wanderley espera reunir mais documentos e fotos do antigo morador da casa, pois, nessa data, receberá uma visita de membros do Raide Latécoère 2014, que virão ao Brasil refazendo as escalas da Aéropostale. Um dia antes, eles passarão também pelos lugares comprovadamente visitados pelos aviadores na cidade do Rio. O Raide, que significa uma incursão ou um voo de longo percurso, passará também por Pelotas, no Rio Grande do Sul; por Florianópolis, em Santa Catarina; Santos, em São Paulo; e Natal, no Rio Grande do Norte. Todos esses lugares funcionaram, há mais de 80 anos, como postos da companhia aérea francesa.

            Até nos mais delicados detalhes, José Augusto Wanderley cuida para que essa memória não se perca. Pelo menos, não em Itaipava.

            - Eu coloquei imagens e frases do livro de Saint-Exupéry até nos interruptores da casa. De alguma forma, gosto de preservar a história do lugar - diz Wanderley.

            E no que depender da família de Marcel Reine, que mora na França, a relação entre a casa brasileira e seu antigo dono se perpetuará. O sobrinho de piloto até já fez um busto do tio para enviar à casa de Itaipava.

            O pai de Wanderley comprou o imóvel de Reine pouco antes da Segunda Guerra Mundial (1939-1945), quando a Aéropostale já tinha se agregado a outras quatro empresas, formando a Air France.


            O objetivo da Amab, presidida por Mônica, é, junto com o Raide, recensear os vestígios da passagem dos aviões da Aéropostale pelo Brasil e pedir o tombamento material pela Unesco. A intenção é colocar construções como a casa de Petrópolis na rota turística e histórica.

Em Itaipava, um dos hobbys dos amigos pilotos e seus convidados era fazer longas cavalgadas pela grande 
propriedade de Marcel Reine. 
E, como a cidade ainda era pouco povoada no final da década de 1920, 
eles podiam andar pelos morros sem preocupação. 

No imóvel de Itaipava, comprado pelo piloto Marcel Reine, os amigos se reuniam para descansar quando 
passavam pela escala do Rio.
Na foto, o sedutor Jean Mermoz está de pé, com cigarro na boca e camisa listrada.
Ele é até hoje considerado o maior aviador que já passou pela companhia francesa Aéropostale, empresa 
que inaugurou o correio aéreo; e um dos mais competentes do mundo.
Foi o primeiro a atravessar o Atlântico e o primeiro a fazer voos noturnos. 
Na imagem, também pode-se ver algumas moças.
Eles as levavam para Itaipava porque elas não podiam entrar nas bases




terça-feira, 30 de maio de 2017

PILOTO DE GUERRA - 6

 Vão se vestir  disse-nos o Comandante —, e estejam no ar às cinco e meia.

 — Até logo, Comandante.

 O comandante responde com um gesto vago. Superstição? Como meu cigarro está apagado e vasculho em vão meus bolsos: Por que você nunca tem fósforos? Exatamente. E passo pela porta, com esse adeus, perguntando-me: “Por que nunca tenho fósforos?”.

  — A missão o aborrece  observa Dutertre.  Eu penso: “Ele não se lixa”. Mas não é em Alias que estou pensando, fazendo essa tirada injusta. Estou chocado com uma evidência que ninguém confessa: a vida do Espírito é intermitente. A vida da Inteligência, somente esta, é permanente, ou quase. Há poucas variações em minhas faculdades de análise. Mas o Espírito não considera os objetos, considera o sentido que os liga entre si. O rosto que é lido através deles. E o Espírito passa da plena visão à cegueira absoluta. Quem ama sua morada, chega a hora em que não vê ali nada além da junção de objetos disparatados. Quem ama sua mulher, chega a hora em que só  no amor preocupações, contrariedades e obrigações. Quem apreciava certa música, chega a hora em que ela nada lhe significa. Chega a hora, como agora, em que não entendo mais meu país. Um país não é a soma de terras, costumes, materiais, que minha inteligência sempre consegue apreender. É um Ser. E chega a hora em que estou cego aos Seres.

 O comandante Alias passou a noite com o general discutindo lógica pura. A lógica pura arruína a vida do Espírito. Depois, ele se esgotou, na estrada, contra imensos engarrafamentos. Depois, ele encontrou, chegando ao Grupo, cem dificuldades materiais daquelas que nos roem pouco a pouco, como os mil efeitos do desmoronamento incontrolável de uma montanha. Ele enfim nos convocou para lançar-nos numa missão impossível. Somos objetos da incoerência geral. Não somos, para ele, Saint-Exupéry ou Dutertre, dotados de um modo particular de ver as coisas ou de não ver, de pensar, andar, beber, sorrir. Somos pedaços de uma grande construção cujo encaixe leva-se mais tempo, mais silêncio e mais recuo para descobrir. Se fosse acometido de um tique, Alias só teria observado o tique. Não expediria, a Arras, senão a imagem de um tique. Na balbúrdia dos problemas que se apresentam, no imbróglio, nós mesmos estamos divididos em pedaços. Essa voz. Aquele nariz. Esse tique. E pedaços não comovem.

             Não se trata aqui do Comandante Alias, mas de todos os homens. Durante os preparativos de enterro, amamos o morto, não estamos em contato com a morte. A morte é uma coisa grande. É uma nova rede de relações com as ideias, os objetos, os costumes do morto. Ela é um novo arranjo do mundo. Nada mudou aparentemente, mas tudo mudou. As páginas do livro são as mesmas, mas não o sentido do livro. Precisamos, para sentir a morte, imaginar as horas em que temos necessidade do morto. Então, ele nos faz falta. Imaginar as horas em que ele precisaria de nós. Mas ele não precisa mais de nós. Imaginar a hora da visita amiga. E descobri-la oca. É preciso ver a vida em perspectiva. Mas não há perspectiva nem espaço no dia em que se enterra. O morto está ainda em pedaços. O dia em que se enterra, nós nos dispersamos em repisamentos, nas mãos de amigos verdadeiros ou falsos a apertar, nas preocupações materiais. O morto morrerá  amanhã, no silêncio. Mostrar-se-á para nós em sua plenitude, para ser arrancado, em sua plenitude, da nossa substância. Então gritaremos por aquele que se vai, e que não podemos reter.

   Não gosto das gravuras de Épinal sobre a guerra. O guerreiro rude aparece secando uma lágrima e dissimulando sua emoção com suas tiradas violentas. É falso. O guerreiro rude nada dissimula. Se solta uma tirada, é que está pensando numa tirada.

    A qualidade do homem não está em questão. O comandante Alias é perfeitamente sensível. Se não voltarmos, talvez ele sofra mais do que qualquer outro. Com a condição de que se trate de nós e não de uma soma de detalhes diversos. Com a condição de que essa reconstrução lhe seja permitida pelo silêncio. Pois se, esta noite, o guardião que nos persegue obrigar o Grupo a se mudar novamente, uma roda de caminhão quebrada, numa avalanche de problemas, adiará nossa morte. E Alias se esquecerá de sofrer por isso.

    Assim eu, que parto em missão, não penso em luta do Ocidente contra o nazismo. Penso em detalhes imediatos. Imagino o absurdo de um sobrevoo sobre Arras a setecentos metros. Na vacuidade das informações que desejam obter de nós. Na lentidão de uniformizar-se como uma toalete para um carrasco. E depois nas minhas luvas. Diabos, onde enfiei as luvas? Perdi minhas luvas.

    Não vejo mais a catedral que habito.


   Estou me vestindo para o culto de um deus morto.

A VIDA DE SAINT-EXUPÉRY - 35


            Quando Guillaumet recuperou as forças, foi organizada uma festa em seu apartamento de Buenos Aires. A exuberância demonstrada por Saint-Exupéry naquela ocasião ainda era lembrada diversos anos mais tarde. Ele entoou canções obscenas a todo volume, interrompendo-se apenas para perguntar ao amigo se não tinha percebido aviões em sua busca. Pelo menos duas vezes o piloto acidentado ouvira um avião dar voltas acima das montanhas, e a alegria de Saint-Exupéry aumentou quando ficou evidente que ele estava pilotando um dos aviões.

            Henri e Noëlle Guillaumet tinham se casado no ano anterior e, ao raiar do dia, tiveram de expulsar Saint-Exupéry para ficarem um pouco tranquilos. Antoine os visitava praticamente todas as noites, acompanhando-os ao cinema, ao night-club ou ao parque de diversões. Às vezes cochilava no divã, e era preciso ajudá-lo a descer para encontrar um táxi. Uma vez em que desceu sozinho foi encontrado dormindo no elevador, algumas horas mais tarde.

            Os Guillaumet também tiveram de se acostumar com uma longa série de suas namoradas. O Saint-Exupéry de Correio Sul, que não acreditava em encontros fortuitos, descobrira as alegrias da celebridade numa profissão que atraía multidões de admiradoras. Seu título aristocrático e seu sucesso literário aumentavam seu charme, mas todos os pilotos eram admirados tanto quanto os ases do mundo esportivo. Embora não apreciasse de forma alguma a comparação com os toureiros, os aviadores possuíam a mesma aura de coragem e sangue frio, que Saint-Exupéry explorava para aumentar a lista das que chamava de suas “pequenas”, suas conquistas de solteiro.

            O intenso sentimento de fraternidade sentido durante o salvamento de Guillaumet reforçara sua convicção de que não fora feito para as responsabilidades de chefe, preferindo ser apenas um membro do grupo. Seu cargo de diretor do tráfego, devendo sancionar casos de atraso ou acidente, mesmo quando a culpa não era do piloto, o distanciava de seus homens. Em Voo Noturno, Saint-Exupéry critica implicitamente seu alter ego, o inspetor Robineau, que sente prazer em exercer o poder delegado por Rivière sobre a tripulação. Entrelinhas, admite que as decisões que tomava eram apenas a aplicação tolamente repetitiva da severidade cuidadosamente estudada de Rivière.

             Ao multar os pilotos que infringiam as instruções, Robineau justifica suas decisões pela necessidade de obedecer ao regulamento da linha. Em compensação, Rivière entende que regras estritas são indispensáveis. Para os leigos, elas parecem tão absurdas quanto os rituais religiosos, mas, segundo Rivière, elas “formavam homens”. Voo Noturno é um discurso em favor de uma autoridade como a dos jesuítas e de uma doutrina rígida de mando; por isso parece paradoxal que Saint-Exupéry tenha evitado a responsabilidade, preferindo ser visto como simples soldado e não como oficial. Mesmo durante a guerra, tendo mais idade que a maioria dos pilotos, recusou todas as ofertas de comando.

            É evidente que sua extrema ansiedade, que frequentemente lhe provocava excessivos remorsos ou dúvidas, deve ser uma das razões de sua atitude. Um dos raros exemplos conhecidos de sanção tomada por Saint-Exupéry, com exceção das punições provavelmente fictícias infligidas por Robineau, é atribuída a Rivière, aliás, Daurat, em Voo Noturno, como se Antoine não pudesse assumir pessoalmente a ação. Um mecânico chamado Roblet é dispensado por incompetência por Rivière, embora tenha trabalhado vinte anos na aeronáutica e construído o primeiro avião que voou na Argentina. Rivière se pergunta se não foi injusto ao demitir esse homem, até que os controladores de voo comentam a chegada de um avião cujos instrumentos deixaram de funcionar após uma montagem malfeita atribuída a Roblet.

           
Didier Daurat, Diretor de Operações da Aéropostale,
veterano da Primeira Guerra, mentor de Saint-Exupéry,
e personagem em vários de seus livros.
Roblet realmente existiu e foi obrigado a pedir demissão pelo próprio Saint-Exupéry, segundo Paul Descendit, que foi mecânico-chefe na Latécoère. Ele justificou a demissão considerando Roblet fisicamente incapaz de efetuar seu trabalho, que exigia “ser jovem, robusto e gozar de boa saúde”. É provável que outras decisões, baseadas em regulamentos severos, tenham suscitado tenazes ressentimentos. Uma vez Saint-Exupéry aplicou uma multa de 200 pesos a um piloto de correio por ter vindo socorrê-lo após uma aterrissagem forçada. Se o aviador tivesse seguido as instruções de Daurat, teria de encaminhar sua carga de correio à base mais próxima antes de ajudar seu chefe.

            Saint-Exupéry teria podido eventualmente aceitar a justa demissão de um elemento duvidoso da rede aérea, porém nunca teria suportado, como Daurat, forçar as tripulações a assumirem riscos enormes, por mais nobres que fossem. O acidente relatado em Voo Noturno está inspirado em outro, real, ocorrido na baía de Montevidéu em maio de 1930, que custou a vida de um piloto de Latécoère, Élysée Négrin. Outras três pessoas lá encontraram a morte, entre elas Julien Pranville, antigo assistente de Daurat em Toulouse, enviado para dirigir as operações na América do Sul.

            Nos quinze meses anteriores, Daurat perdera seis pilotos e três encarregados de rádio, mas esse acidente era particularmente de mau augúrio. Pranville chegara a Natal, Brasil, para receber a primeira conexão aérea por hidravião realizada por Mermoz e organizada por Daurat, entre a África e a América do Sul. O acidente provocou o questionamento do novo serviço, mas Daurat não ficou perturbado. Manteve o voo inaugural, que saiu do Senegal em 12 de maio de 1930, carregado com 150 quilos de correspondência vindas de Toulouse num tempo recorde de 25 horas.

            Jean Mermoz pilotava o Latécoère 28, Comte de la Vaulx, num dos voos de longa distância mais importantes da história da aviação, iniciando assim a conexão correio e passageiros sobre o Atlântico sul. O voo inspirou um trecho espetacular de Terra dos Homens, no qual Saint-Exupéry relata a descrição de Mermoz dos gigantescos tornados marinhos elevando-se na superfície do oceano Atlântico como os negros pilares de um templo.

            Apesar das perturbações climáticas ameaçadoras, o correio foi transportado por etapas da França à África, sobre o Atlântico e a América do Sul, para chegar à costa do Pacífico apenas quatro dias e meio após a decolagem de Toulouse. O acontecimento provocou um grande alvoroço na América do Sul, onde os aviadores da Aéropostale foram celebrados como heróis folclóricos em canções populares.

            Seis anos mais tarde, Saint-Exupéry foi entrevistado por um jornal francês, La Flèche, após a morte de Mermoz em outra travessia do Atlântico. Nesse artigo existe uma frase notável. Referindo-se às façanhas daquele período, Saint-Exupéry dizia que todos os pilotos sentiam ter realizado um grande esforço e cumprido um dever quando conseguiam completar com sucesso um voo particularmente perigoso. “Mermoz sentia isso mais do que ninguém”, acrescentou. “Possuía uma espécie de júbilo interior, um sentimento confuso porém seguro de que nós, enquanto homens, tínhamos nos tornado mais nobres.”

            Saint-Exupéry não pode desempenhar um papel ativo no recorde entre o sul da França e o Pacífico por estar preso a seu escritório de Buenos Aires, morrendo de inquietação pelos longos silêncios quando o contato com o rádio era interrompido. Para ele, o “júbilo interior” limitou-se a felicitar os colegas pela proeza. Após essa experiência, deixou de ambicionar escalões hierárquicos mais altos. Sonhava apenas com voltar à rotina de piloto de correio. Os meses posteriores deram à sua vida pessoal, bem como à sua carreira profissional e literária, um curso acidentado, no qual se originaram várias das decepções de seu turbulento casamento com Consuelo Suncin.

Antoine e Guillaumet diante do avião

 

            

A incrível noite de Natal em que A Guerra parou

Trégua de Natal (em inglêsChristmas truce; em alemãoWeihnachtsfrieden) é o termo usado para descrever o armistício informal ocorrido ao longo da Frente Ocidental no Natal de 1914, durante a Primeira Guerra Mundial. Durante a semana que antecedeu o Natal, soldados alemães e britânicos trocaram saudações festivas e canções entre suas trincheiras; na ocasião, a tensão foi reduzida a ponto dos indivíduos entregarem presentes a seus inimigos. Na véspera de Natal e no Dia de Natal, muitos soldados de ambos os lados - bem como, unidades francesas ainda que em menor número - se aventuraram na "terra de ninguém", onde se encontraram, trocaram alimentos e presentes, e entoaram cantos natalinos ao longo de diversos encontros. As tropas de ambos os lados também foram amigáveis o suficiente para jogarem partidas de futebol.
Cruz deixada próximo a YpresBélgica (1999) em 
comemoração aos 85 anos da Trégua de Natal de 1914.
A trégua é vista como um momento simbólico de paz e de humanidade meio a um dos eventos mais violentos da história moderna, mas não foi universal: em algumas frentes de combate a luta continuou durante todo o dia, enquanto em outras foi feito apenas o trabalho de recolher os corpos. No ano seguinte, algumas unidades estavam dispostas ao cessar-fogo durante o Natal, mas a trégua não foi tão divulgada como em 1914, devido em parte às ordens dos altos comandos de ambos os lados que proibiram tal confraternização. Em 1916, após as sangrentas batalhas de Somme e Verdun e com o início do uso generalizado de gás venenoso, os soldados de ambos os lados cada vez menos enxergavam seus adversários como humanos, e a trégua de Natal não voltou a ser realizada.
Nos primeiros meses de guerra imóvel de trincheiras, as tréguas não eram restritas apenas ao período de Natal, e refletiam um clima crescente de "viva e deixe viver", onde unidades de infantaria em estreita proximidade de outras evitavam um comportamento abertamente agressivo, e muitas vezes se engajavam em pequenas confraternizações, promovendo conversas ou troca de cigarros. Em alguns setores havia cessar-fogos ocasionais, para que os soldados pudessem ir entre as linhas de combate para resgatar os companheiros feridos ou mortos, enquanto em outros vigorava um acordo tácito para não atirar enquanto os homens descansavam, se exercitavam, ou trabalhavam à vista do inimigo. As tréguas de Natal foram particularmente notáveis devido ao número de homens envolvidos e ao nível de participação - mesmo em setores muito pacíficos, haver dezenas de homens que se reuniam abertamente à luz do dia era notável.
Contexto
Durante os primeiros meses da Primeira Guerra Mundial, as tropas alemãs atacaram a França através do território belga. As tropas foram repelidas de Paris pelos franceses e britânicos na Batalha do Marne, no início de setembro de 1914. Os alemães se refugiaram então no vale do Aisne, onde permaneceram em posição defensiva. Na batalha posterior - a batalha do Aisne -, as forças aliadas não foram capazes de avançar através da linha alemã e a luta rapidamente chegou a um impasse: nenhum dos lados estava disposto a ceder terreno e ambos começaram a construir sistemas fortificados de trincheiras. Ao norte, à direita do exército alemão, não havia uma linha de frente definida, e ambos os lados tentaram rapidamente usar essa brecha para se flanquearem uma à outra. Durante a corrida para o mar que se seguiu, os dois lados se enfrentaram repetidamente, cada um tentando avançar à frente do outro. Depois de vários meses de luta, durante os quais as forças britânicas foram retiradas do Aisne e enviadas para o norte em Flandres, o flanco norte estava em um impasse semelhante. Em novembro, havia uma linha de frente contínua, desde o mar do norte até a fronteira suíça, a qual era ocupada em ambos os lados pelos exércitos preparados em posições defensivas.
Aproximação ao Natal
Diversas iniciativas de paz foram incitadas dias antes do Natal de 1914. A Carta Aberta de Natal foi uma mensagem pública de paz dirigida "às Mulheres da Alemanha e da Áustria", assinada por um grupo de 101 mulheres sufragistas britânicas ao final de 1914, data em que se aproximava o primeiro Natal da Primeira Guerra Mundial. O Papa Bento XV, em 7 de dezembro de 1914, aludira a uma trégua oficial entre os governos em guerra, pedindo "que as armas possam cair em silêncio, ao menos na noite em que os anjos cantam". O apelo foi recusado pelas autoridades.
Natal de 1914
Embora não houvesse nenhuma trégua oficial, cerca de 100 mil soldados britânicos e alemães estavam envolvidos em cessar-fogos não oficiais ao longo de toda a frente ocidental. A trégua começou na véspera de Natal, 24 de dezembro de 1914, quando as tropas alemãs decoraram o entorno de suas trincheiras na região de Ypres, Bélgica, havendo várias tréguas não oficiais esparsas que perduraram, por até seis dias. O historiador americano Stanley Weintraub calculou em, aproximadamente, cem mil soldados de ambos os lados, aderindo em algum momento às tréguas de natal de 1914. Mas esta trégua não oficial não atingiu a todos os soldados localizados no Front ocidental, sendo que houve vários locais em que a batalha sangrenta prosseguiu normalmente durante o dia de Natal.
Os alemães colocaram velas nas trincheiras e decoraram árvores de Natal, continuando em seguida a celebração ao cantar canções de Natal. Os britânicos responderam cantando as suas próprias canções. Houve casos em que alemães e ingleses começaram, de suas próprias trincheiras, a cantar unidos os mesmos cânticos natalinos, ainda que em suas próprias línguas e versões como escreveu o fuzileiro Graham Williams, da 1ª Brigada de Fuzileiros de Londres: “Começamos a cantar O Come, All Ye Faithful e imediatamente os alemães se uniram cantando o mesmo hino em suas palavras latinas, Adeste Fideles. Que coisa extraordinária – duas nações inimigas entoando o mesmo cântico no meio da guerra”.
Os dois lados continuaram gritando saudações de Natal um para o outro, até que começaram a surgir convites e iniciativas de ambos os lados para uma trégua e até um encontro pacífico, como, por exemplo, o descrito anos depois pelo capitão alemão Josef Sewald, do 17º Regimento Bávaro: “Gritei para os nossos inimigos que não queríamos atirar e que faríamos uma trégua de Natal. Disse que eu viria do meu lado e que poderíamos conversar entre nós. A princípio, houve silêncio, voltei a gritar e um inglês gritou, "Parem os tiros!” Aí um deles saiu das trincheiras e eu fiz o mesmo, e nos aproximamos e trocamos um aperto de mãos – um tanto cautelosos!” Pouco depois, começaram a se fazer travessias através da Terra de Ninguém, onde eram trocados alguns presentes, como tabaco, alimentos, álcool, ou recordações como botões e chapéus. A artilharia nesta região permaneceu em silêncio.
Na manhã de Natal, uma Missa bilíngue foi rezada por um padre escocês e um seminarista alemão selou o momento de ecumênica harmonia, “um espetáculo extraordinário”, deslumbrou-se o tenente Arthur Pelham Burn, do 6º Regimento dos Highlanders. “Os alemães alinhados de um lado, os britânicos de outro, os oficiais à frente, todos de cabeça descoberta.” É sabido foi realizada, ao menos, uma partida de futebol amistosa envolvendo soldados franceses, alemães e ingleses, em Saint-Yves, durante o dia de Natal. A trégua também permitiu que os soldados mortos recentemente pudessem ser trazidos de volta para suas linhas para poderem ser enterrados. Foram realizados vários funerais em conjunto. A confraternização teve alguns riscos; alguns soldados foram mortos pelas forças da oposição. Em muitos setores, a trégua durou apenas até a noite de Natal, mas em outras continuou até ao Dia de Ano Novo.
Bruce Bairnsfather, que serviu durante a guerra, escreveu:
Eu não perderia aquele único e estranho dia de Natal por nada deste mundo... encontrei um oficial alemão, um tenente penso eu, e sendo um colecionador, disse a ele que havia gostado de alguns de seus botões. Eu trouxe meu cortador de arame, retirei um par de botões e coloquei-os no bolso. Então eu lhe dei dois dos meus em troca... depois reparei num dos meus artilheiros, que era cabeleireiro amador na vida civil, a cortar o cabelo bastante longo de um boche dócil, que estava pacientemente ajoelhado no chão, enquanto a máquina de corte deslizava em volta de seu pescoço.
O general Sir Horace Smith-Dorrien, comandante do II Corpo britânico, revoltou-se ao saber o que estava acontecendo e emitiu ordens estritas proibindo a comunicação amigável com as tropas adversárias alemãs.
Adolf Hitler, um jovem cabo do 16ª Reserva bávara de Infantaria, estava entre os oponentes da trégua, tendo desabafado à respeito que: “Essas coisas não deviam acontecer em tempo de guerra. Os alemães perderam todo o senso de honra?”.
Descendentes de veteranos da guerra, em 
uniformes de época,apertando as mãos na 
inauguraçãode um memorial para a trégua
(Frelinghien, França, 2008).
Trégua franco-alemã
Richard Schirrmann - que estava em um regimento alemão posicionado sobre o Bernhardstein, uma das montanhas dos Vosges - escreveu um relato dos eventos em dezembro de 1915: "Quando os sinos de Natal soaram nas aldeias do Vosges atrás das linhas... aconteceu uma coisa nada militar. As tropas alemãs e francesas fizeram espontaneamente as pazes e cessaram as hostilidade; eles se visitaram uns aos outros através de túneis de trincheira em desuso, trocaram vinho, conhaque, cigarros, pão-preto da Vestefália, biscoitos e presunto. Eles permaneceram bons amigos mesmo depois do Natal." A disciplina militar foi imediatamente restaurada, mas Schirrmann ponderou sobre o incidente e pensou que talvez "os jovens de todos os países poderiam se reunir em lugares adequados onde pudessem ficar e conhecer uns aos outros." Schirrmann viria a fundar em 1919 a associação alemã dos Albergues da Juventude.
Monumento
Um memorial da Trégua de Natal foi inaugurado em Frelinghien, França, em 11 de novembro de 2008. Neste mesmo dia, no local onde no dia de Natal de 1914 seus antepassados ​​regimentais saíram de suas trincheiras para jogar futebol, homens do 1º Batalhão dos Royal Welch Fusiliers jogaram uma partida de futebol com o Batalhão alemão 371. Os alemães venceram por 2-1.

segunda-feira, 29 de maio de 2017

CORREIO SUL - 6

É necessário que eu retroceda e comece a narrar aqueles dois meses passados, pois, do contrário, que restará deles? Quando os fatos que vou contar tiverem pouco a pouco encerrado seu fraco remoinho, seus círculos concêntricos, sobre aqueles personagens que simplesmente apagaram, como a água morta de um lago, quando se amortecerem as emoções pungentes, depois atenuadas, e a seguir doces, que esses acontecimentos me proporcionaram, o mundo novamente me parecerá seguro. Agora já posso passar por esses caminhos, onde a recordação de Geneviève e de Bemis devia ser-me cruel, sem sentir mais do que uma certa pena?

            Dois meses antes, Bernis subia até Paris; todavia, após tão longa ausência, já não encontrou o seu lugar; obstrui-se uma cidade. Agora, é apenas um Jacques Bemis que usa um casaco cheirando a cânfora. Movia-se com um corpo entorpecido, desajeitado e reclamava tudo de instável e provisório que revelavam suas cantinas muito bem arranjadas num canto do quarto, um quarto que carecia ainda de roupa branca e de livros.
            "Alô... É você?" Reatam-se as amizades que exclamam ao cumprimentá-lo:
             — Um fantasma! Bravo!
            — E então, quando nos veremos?
          Precisamente hoje não estamos livres. Amanhã? Amanhã jogaremos golfe, mas venha também. Não quer? Então, depois de amanhã. Jantar. Exatamente às oito horas.
          Entra, pesado, num dancing, e conserva, no meio dos gigolôs, seu casaco como uma vestimenta de explorador. Passam a noite naquele recinto como peixes num aquário, improvisam madrigais, dançam e voltam a beber. Naquele meio impreciso, onde apenas ele conserva a razão, Bemis se sente pesado como um carregador, com todo o peso sobre as pernas. Seus pensamentos são vagos. Passa por entre as mesas em direção a um lugar vazio. Os olhos das mulheres que ele tenta atingir com os seus esquivam-se, parecem extinguir-se. A sua passagem, os jovens afastam-se, flexíveis. Da mesma forma, à noite, os cigarros das sentinelas caem dos dedos, à medida que o oficial de ronda avança.

            Reencontramos sempre esse mundo, como os marinheiros bretões reencontraram sua aldeia de cartão-postal e suas noivas muito fiéis, que, durante sua ausência, parece que nem envelheceram. Tudo permanece invariável, como a gravura de um livro infantil Ao surpreendermos tudo em seu lugar, cada coisa disposta pelo destino, invade-nos um receio de algo incompreensível. Bemis perguntava por um amigo. “Mas é lógico. O mesmo. Seus negócios não vão lá muito bem. Enfim, você sabe... a vida." Todos se sentiam prisioneiros de si próprios, limitados por esse freio obscuro, e não como ele, esse fugitivo, essa pobre criança, esse mágico.
          Os rostos de seus amigos imperceptivelmente mudados e afilados por dois invernos e dois verões. Aquela mulher no canto do bar: ele a reconhece. Um rosto levemente gasto de tanto sorrir. Era o mesmo barman. Temeu que o reconhecesse, como se essa voz, interrogando-o, pudesse ressuscitar nele um Jacques Bernis extinto, sem asas, um Jacques Bernis que não se evadira.
            Durante o regresso, uma paisagem já se edificava lentamente em tomo dele, como uma prisão. As areias do Saara e os rochedos da Espanha fugiam pouco a pouco de seus olhos, como se retiram as vestes no teatro, e deixavam aparecer a paisagem verdadeira. Enfim, uma vez transposta a fronteira, surgia o campo de Perpignan, onde o sol ainda se arrastava, em oblíquos e delgados filetes de ferro candente que a cada minuto se atenuavam, com suas vestimentas de ouro, dispersas sobre a grama, a cada instante mais frágeis, mais transparentes e que não se extinguem, mas se evaporam. Surgiu então aquele esverdeado de limo sombrio e calmo sob o ar azul — cenário tranquilo. Motor parando, barulho amortecido no mergulho em direção àquele fundo de mares onde tudo repousa, onde tudo adquire a evidência e a durabilidade de um muro.
            Depois, o trajeto de automóvel do aeroporto para a estação. Esses votos em frente ao dele, trancadas, austeras. Mãos que levam traçados os destinos e que se apoiam em cheio, pesadas, sobre os joelhos. Camponeses encontrados no caminho, regressando do campo. Moça parada à porta, esperando um homem entre cem mil e renunciando a cem mil esperanças. Mãe embalando uma criança, já prisioneira, sem possibilidades de fuga.
            As mãos nos bolsos, sem valise, piloto de linha, diretamente instalado no segredo das coisas, Bernis voltava ao país pelo caminho mais íntimo. Acha-se novamente no mundo imutável onde, para derrubar uma parede ou prolongar um campo, são precisos vinte anos de processo.
            Após dois anos de África e de paisagens móveis e sempre cambiantes como a superfície do mar, mas que, na sua contínua sucessão, tomavam sem atrativos a antiga paisagem, a única, a eterna, aquela de onde ele saíra, Bemis firmava-se num verdadeiro solo, como um arcanjo triste.
            “Nada mudou..."
            Temera encontrar as coisas diferentes, e eis que sofria por descobri-las tão semelhantes às que deixara. Dos encontros e das amizades, nada mais esperara, a não ser um vago aborrecimento. Imagina-se, de longe. Ao partir, deixam-se as ternuras para trás com um doloroso aperto no coração, mas também com um estranho sentimento de tesouro escondido sob a terra. Algumas vezes, essas fugas revelam tanto amor avarento... Sonhando, certa noite, no Saara povoado de estrelas, com essas longínquas ternuras, ardentes e protegido pela noite e pelo tempo, como sementes, teve este súbito desejo: desligar- se de si mesmo para velar seus sentimentos. Apoiado no avião em pane, ante aquela curva da areia, aquela volta do horizonte, zelava por seus amores como um pastor...
            “E eis o que encontro!"
            Assim, Bemis escreveu-me um dia:

      ... Não lhe falo de meu regresso: creio-me senhor das coisas quando as emoções me correspondem. Nenhuma delas, porém, despertou. Eu era como o peregrino que chega um minuto depois a Jerusalém. Seu desejo e sua fé extinguiram-se há pouco: encontra apenas pedras. Esta cidade aqui é um obstáculo. Quero partir outra vez. Você se lembra daquela primeira viagem Fizemo-la juntos. Márcia, Granada, deitadas como bibelôs numa vitrine e, como não aterrissávamos, amortalhadas no passado. A li depositadas pelos séculos que se afastam. O motor estrondava com aquele barulho denso que existe por si e atrás do qual, silenciosamente, a paisagem passa como num filme. Fazia frio, pois voávamos alto: aquelas cidades aprisionadas pelo gelo... Lembra-se?
            Guardei os papéis que você me passava:
            “Observe esse ruído irregular... se isso aumentar, não atravesse o estreito."
            Duas horas depois, em Gibraltar: Espere Tarifa para atravessar melhor."
            Em Tânger: “Não aterrisse muito ao longo: terreno sem firmeza."
            Apenas isso. Conquista-se o mundo com essas frases. Eu tinha a revelação de uma estratégia que aquelas ordens lacônicas tornavam tão forte. Tânger, essa cidade insignificante, era minha primeira conquista. Era, veja voei, minha primeira aventura. Sim. Conquistei-a primeiro lá do alto: depois, durante a descida, aquela eclosão de campos, flores, casas. Eu trazia à luz uma cidade submersa que se tornava real. E logo em seguida aquela maravilhosa descoberta: a quinhentos metros de distância, aquele árabe que trabalhava a terra e que eu fazia crescer a meus olhos, dando-lhe dimensões de homem, era verdadeiramente minha presa de guerra, minha criação ou meu brinquedo. Aprisionara um refém, e a África me pertencia.
            Dois minutos depois, de pé sobre a relva, sentia-me jovem, como se tivesse pousado numa estrela onde a vida recomeça. Messe novo ambiente, no solo, no céu, eu me sentia como uma árvore nova. Repousava da viagem com aquela fome adorável. Dava passos longos e flexíveis para descansar da pilotagem e achava graça porque conseguira, ao aterrissar, atingir a minha sombra.
            E a primavera! Lembra-se daquela primavera, depois da chuva cinzenta de Toulouse? Aquele ar tão puro que circulava entre as coisas. Cada mulher possuía um segredo: uma expressão, um gesto, um silêncio. E todas eram
             desejáveis. Depois, voei me conhece, aqueia pressa de partir outra vez, de buscar mais longe o que eu pressentia e não compreendia, pois eu era como um mágico que anda pelo mundo com a varinha trêmula na mão em busca de um tesouro.
            Mas, diga-me, por favor, o que é que procuro? Por que, nesta cidade onde estão meus amigos, meus desejos e minhas lembranças, eu sofro e me desespero apoiado à janela? Diga-me por que, pela primeira vez, não descubro a nascente e por que me sinto tão longe do tesouro? Qual é esta promessa obscura que me foi feita e que um deus desconhecido não cumpre?

            Encontrei a nascente. Você se lembra? E Geneviève...