segunda-feira, 29 de maio de 2017

CORREIO SUL - 6

É necessário que eu retroceda e comece a narrar aqueles dois meses passados, pois, do contrário, que restará deles? Quando os fatos que vou contar tiverem pouco a pouco encerrado seu fraco remoinho, seus círculos concêntricos, sobre aqueles personagens que simplesmente apagaram, como a água morta de um lago, quando se amortecerem as emoções pungentes, depois atenuadas, e a seguir doces, que esses acontecimentos me proporcionaram, o mundo novamente me parecerá seguro. Agora já posso passar por esses caminhos, onde a recordação de Geneviève e de Bemis devia ser-me cruel, sem sentir mais do que uma certa pena?

            Dois meses antes, Bernis subia até Paris; todavia, após tão longa ausência, já não encontrou o seu lugar; obstrui-se uma cidade. Agora, é apenas um Jacques Bemis que usa um casaco cheirando a cânfora. Movia-se com um corpo entorpecido, desajeitado e reclamava tudo de instável e provisório que revelavam suas cantinas muito bem arranjadas num canto do quarto, um quarto que carecia ainda de roupa branca e de livros.
            "Alô... É você?" Reatam-se as amizades que exclamam ao cumprimentá-lo:
             — Um fantasma! Bravo!
            — E então, quando nos veremos?
          Precisamente hoje não estamos livres. Amanhã? Amanhã jogaremos golfe, mas venha também. Não quer? Então, depois de amanhã. Jantar. Exatamente às oito horas.
          Entra, pesado, num dancing, e conserva, no meio dos gigolôs, seu casaco como uma vestimenta de explorador. Passam a noite naquele recinto como peixes num aquário, improvisam madrigais, dançam e voltam a beber. Naquele meio impreciso, onde apenas ele conserva a razão, Bemis se sente pesado como um carregador, com todo o peso sobre as pernas. Seus pensamentos são vagos. Passa por entre as mesas em direção a um lugar vazio. Os olhos das mulheres que ele tenta atingir com os seus esquivam-se, parecem extinguir-se. A sua passagem, os jovens afastam-se, flexíveis. Da mesma forma, à noite, os cigarros das sentinelas caem dos dedos, à medida que o oficial de ronda avança.

            Reencontramos sempre esse mundo, como os marinheiros bretões reencontraram sua aldeia de cartão-postal e suas noivas muito fiéis, que, durante sua ausência, parece que nem envelheceram. Tudo permanece invariável, como a gravura de um livro infantil Ao surpreendermos tudo em seu lugar, cada coisa disposta pelo destino, invade-nos um receio de algo incompreensível. Bemis perguntava por um amigo. “Mas é lógico. O mesmo. Seus negócios não vão lá muito bem. Enfim, você sabe... a vida." Todos se sentiam prisioneiros de si próprios, limitados por esse freio obscuro, e não como ele, esse fugitivo, essa pobre criança, esse mágico.
          Os rostos de seus amigos imperceptivelmente mudados e afilados por dois invernos e dois verões. Aquela mulher no canto do bar: ele a reconhece. Um rosto levemente gasto de tanto sorrir. Era o mesmo barman. Temeu que o reconhecesse, como se essa voz, interrogando-o, pudesse ressuscitar nele um Jacques Bernis extinto, sem asas, um Jacques Bernis que não se evadira.
            Durante o regresso, uma paisagem já se edificava lentamente em tomo dele, como uma prisão. As areias do Saara e os rochedos da Espanha fugiam pouco a pouco de seus olhos, como se retiram as vestes no teatro, e deixavam aparecer a paisagem verdadeira. Enfim, uma vez transposta a fronteira, surgia o campo de Perpignan, onde o sol ainda se arrastava, em oblíquos e delgados filetes de ferro candente que a cada minuto se atenuavam, com suas vestimentas de ouro, dispersas sobre a grama, a cada instante mais frágeis, mais transparentes e que não se extinguem, mas se evaporam. Surgiu então aquele esverdeado de limo sombrio e calmo sob o ar azul — cenário tranquilo. Motor parando, barulho amortecido no mergulho em direção àquele fundo de mares onde tudo repousa, onde tudo adquire a evidência e a durabilidade de um muro.
            Depois, o trajeto de automóvel do aeroporto para a estação. Esses votos em frente ao dele, trancadas, austeras. Mãos que levam traçados os destinos e que se apoiam em cheio, pesadas, sobre os joelhos. Camponeses encontrados no caminho, regressando do campo. Moça parada à porta, esperando um homem entre cem mil e renunciando a cem mil esperanças. Mãe embalando uma criança, já prisioneira, sem possibilidades de fuga.
            As mãos nos bolsos, sem valise, piloto de linha, diretamente instalado no segredo das coisas, Bernis voltava ao país pelo caminho mais íntimo. Acha-se novamente no mundo imutável onde, para derrubar uma parede ou prolongar um campo, são precisos vinte anos de processo.
            Após dois anos de África e de paisagens móveis e sempre cambiantes como a superfície do mar, mas que, na sua contínua sucessão, tomavam sem atrativos a antiga paisagem, a única, a eterna, aquela de onde ele saíra, Bemis firmava-se num verdadeiro solo, como um arcanjo triste.
            “Nada mudou..."
            Temera encontrar as coisas diferentes, e eis que sofria por descobri-las tão semelhantes às que deixara. Dos encontros e das amizades, nada mais esperara, a não ser um vago aborrecimento. Imagina-se, de longe. Ao partir, deixam-se as ternuras para trás com um doloroso aperto no coração, mas também com um estranho sentimento de tesouro escondido sob a terra. Algumas vezes, essas fugas revelam tanto amor avarento... Sonhando, certa noite, no Saara povoado de estrelas, com essas longínquas ternuras, ardentes e protegido pela noite e pelo tempo, como sementes, teve este súbito desejo: desligar- se de si mesmo para velar seus sentimentos. Apoiado no avião em pane, ante aquela curva da areia, aquela volta do horizonte, zelava por seus amores como um pastor...
            “E eis o que encontro!"
            Assim, Bemis escreveu-me um dia:

      ... Não lhe falo de meu regresso: creio-me senhor das coisas quando as emoções me correspondem. Nenhuma delas, porém, despertou. Eu era como o peregrino que chega um minuto depois a Jerusalém. Seu desejo e sua fé extinguiram-se há pouco: encontra apenas pedras. Esta cidade aqui é um obstáculo. Quero partir outra vez. Você se lembra daquela primeira viagem Fizemo-la juntos. Márcia, Granada, deitadas como bibelôs numa vitrine e, como não aterrissávamos, amortalhadas no passado. A li depositadas pelos séculos que se afastam. O motor estrondava com aquele barulho denso que existe por si e atrás do qual, silenciosamente, a paisagem passa como num filme. Fazia frio, pois voávamos alto: aquelas cidades aprisionadas pelo gelo... Lembra-se?
            Guardei os papéis que você me passava:
            “Observe esse ruído irregular... se isso aumentar, não atravesse o estreito."
            Duas horas depois, em Gibraltar: Espere Tarifa para atravessar melhor."
            Em Tânger: “Não aterrisse muito ao longo: terreno sem firmeza."
            Apenas isso. Conquista-se o mundo com essas frases. Eu tinha a revelação de uma estratégia que aquelas ordens lacônicas tornavam tão forte. Tânger, essa cidade insignificante, era minha primeira conquista. Era, veja voei, minha primeira aventura. Sim. Conquistei-a primeiro lá do alto: depois, durante a descida, aquela eclosão de campos, flores, casas. Eu trazia à luz uma cidade submersa que se tornava real. E logo em seguida aquela maravilhosa descoberta: a quinhentos metros de distância, aquele árabe que trabalhava a terra e que eu fazia crescer a meus olhos, dando-lhe dimensões de homem, era verdadeiramente minha presa de guerra, minha criação ou meu brinquedo. Aprisionara um refém, e a África me pertencia.
            Dois minutos depois, de pé sobre a relva, sentia-me jovem, como se tivesse pousado numa estrela onde a vida recomeça. Messe novo ambiente, no solo, no céu, eu me sentia como uma árvore nova. Repousava da viagem com aquela fome adorável. Dava passos longos e flexíveis para descansar da pilotagem e achava graça porque conseguira, ao aterrissar, atingir a minha sombra.
            E a primavera! Lembra-se daquela primavera, depois da chuva cinzenta de Toulouse? Aquele ar tão puro que circulava entre as coisas. Cada mulher possuía um segredo: uma expressão, um gesto, um silêncio. E todas eram
             desejáveis. Depois, voei me conhece, aqueia pressa de partir outra vez, de buscar mais longe o que eu pressentia e não compreendia, pois eu era como um mágico que anda pelo mundo com a varinha trêmula na mão em busca de um tesouro.
            Mas, diga-me, por favor, o que é que procuro? Por que, nesta cidade onde estão meus amigos, meus desejos e minhas lembranças, eu sofro e me desespero apoiado à janela? Diga-me por que, pela primeira vez, não descubro a nascente e por que me sinto tão longe do tesouro? Qual é esta promessa obscura que me foi feita e que um deus desconhecido não cumpre?

            Encontrei a nascente. Você se lembra? E Geneviève...


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