quinta-feira, 11 de maio de 2017

CORREIO SUL - PARTE 3

Dentro de cinco horas, Alicante; à noite, a África. Bernis sonha. Está em paz: “Pus tudo em ordem.” Ontem deixava Paris pelo expresso da tarde; que estranhas férias! Guarda delas a lembrança confusa de incompreensível agitação. Mais tarde, sofrerá. Neste instante, porém, deixa tudo para trás, como se tudo continuasse ainda a acontecer fora de si. No momento, parece-lhe estar nascendo com a madrugada que surge, parece-lhe estar ajudando, ó madrugador!, a construir esse dia. Pensa: “Sou apenas um operário; trabalho no correio da África.” E, para o operário, o mundo começa cada dia em que ele se põe a edificá-lo.
“Pus tudo em ordem...” Última noite no apartamento: jornais dobrados ao redor das pilhas de livros. Cartas queimadas, cartas selecionadas, móveis cobertos. Cada coisa cercada, tirada de sua vida, posta no espaço. E esse tumulto do coração que deixará de ter sentido.
Preparou-se para o futuro como para uma viagem. Embarcou para o dia seguinte como para uma América. Tantas coisas inacabadas ainda o prendiam a si próprio. E, de súbito, libertava-se. Bernis quase tem medo de revelar-se tão disponível, tão mortal!
Carcassonne, escala de socorro, afasta-se sob ele. Que mundo tão ordenado — a três mil metros. Ordenado como o redil em sua caixinha. Casas, canis, estradas, brinquedos dos homens. Mundo dividido, mundo quadriculado, onde cada campo tem sua sebe, o parque, seu muro. Carcassonne, onde cada lojista repete a vida de seus avós. Modestas alegrias limitadas. Brinquedos dos homens bem-ordenados na vitrine. Mundo em vitrine, exposto demais e espalhado demais, cidades em ordem no mapa desenrolado e que uma terra, deslizando com lentidão, descortina aos seus olhos com a precisão da maré.
Bernis sonha que está só. Um sol reverbera no quadrante do altímetro. Um sol luminoso e gelado. Um toque na barra de direção deixa para trás toda a paisagem. Essa luz é mineral, o solo também parece mineral; extinguiu-se tudo o que determina a suavidade, o perfume e a debilidade das coisas vivas. Entretanto, sob o casaco de couro, uma carne quente e frágil, Bernis. Sob as luvas espessas, maravilhosas mãos que sabiam, Geneviève, acariciar seu rosto com a ponta dos dedos...
Eis a Espanha.

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