Essa
incompreensão entre pessoas grandes e pequenas seria a fonte da futura
exasperação de Saint-Exupéry diante da falta de discernimento dos adultos. As
crianças criavam para si mesmas refúgios à sua medida, que embelezavam com uma
imaginação desenfreada, num clima de alegre conspiração. Em seu primeiro
romance, Correio Sul, Saint-Exupéry recorda como, à noite, observavam as estrelas
pelos interstícios entre as telhas, espreitando ao mesmo tempo o ruído abafado
das conversas nas profundezas da casa. Os sótãos ofereciam um espaço de
brincadeiras repleto de sonhos e pesadelos. As crianças estavam convencidas de
que um tesouro inestimável estava escondido ali, mas a mais extraordinária das
riquezas ocultas era um armário repleto de roupas e uniformes militares que
tinham pertencido a seu pai.
Foi
provavelmente nesse sótão que Antoine, com apenas 4 anos, encontrou o primeiro
livro que leu do começo ao fim. Tratava-se de um manual sobre a fabricação do
vinho, que descobrira numa velha mala cheia de revistas. Quarenta anos mais tarde,
ele lembrava-se de ter decifrado todas as palavras, porém sem compreender
totalmente seu sentido.
Se
os vastos aposentos pesadamente mobiliados do castelo identificavam o reino dos
adultos, as crianças reinavam no parque. Saint- Maurice só era habitado da
primavera até o início do outono, e as reminiscências de Antoine evocam uma
infância de antes da Grande Guerra que parece perpetuamente banhada de sol. Os
três filhos mais velhos, Marie-Madeleine, Simone e Antoine, descreveram à vontade
o parque do castelo. Os imensos gramados, o pomar, os bosques de pinheiros
proporcionavam inúmeros esconderijos. Esse reino da aventura era tão vasto que
eles nunca o exploraram por completo. Para Antoine, esse território ilimitado tornou-se
seu primeiro ateliê de experimentação mecânica. Tentou elaborar um sistema de
irrigação com bomba a motor para o pomar, no qual esperava produzir legumes.
Também era um terreno propício às proezas cavalheirescas. Em Piloto de Guerra,
ele descreve uma brincadeira que consistia em esquivar-se das gotas de chuva
que caíam durante uma tempestade; aquele que conseguisse, receberia o título de
cavalheiro Aklin até o próximo temporal.
Esse
paraíso estava povoado por animais domésticos; a maioria deles pertencia à irmã
mais velha de Antoine, Marie-Madeleine, conhecida pelo apelido de Biche. Era
tão meiga que se recusava a colher flores para não machucá-las. Simone, menos
sensível e mais determinada, lembrava-se das longas horas passadas a bordar no
ar perfumado pelas ervilhas-de-cheiro, pelos louros-rosas e pelos gerânios. Freqüentemente,
sua mãe lia para eles ou assistia às suas brincadeiras, enquanto pintava
aquarelas. Mas nem sempre o jardim era tão hospitaleiro quanto Antoine o
recordava. As flores de tília, evocadas com ternura em seus livros,
causavam-lhe a febre do feno, obrigando-o a refugiar-se em casa e ficar lendo
na biblioteca.
O
prazer de reencontrar o parque do castelo, onde era possível escapar da
autoridade dos adultos, começava com uma viagem de 50 quilômetros num pequeno
trem a vapor que partia de Lyon até a estação de Leyment, a 3 quilômetros de
Saint-Maurice. Lá uma charrete esperava a família para conduzi-la por um
caminho sinuoso e pedregoso, através de vinhedos e prados, até o alto portão de
ferro forjado que abria sobre a alameda bordejada pelas tílias. Entrava-se pelo
parque e evitava-se o povoado, já que a grande alameda levava diretamente à
maioria dos aposentos principais do andar térreo. Tinha-se, assim, a impressão
de penetrar num território isolado do resto do mundo.
As
janelas da sala de jantar dão para um pátio com um poço, o que nos faz lembrar
que a residência não possuía água corrente durante a infância de Saint-Exupéry.
Atualmente, esse pátio constitui o principal acesso ao castelo e à capela. Um
portão de ferro abre-se sobre as ruas de Saint-Maurice-de-Rémens, que mudou
apenas super- ficialmente no decorrer dos últimos 100 anos. Uma das novidades mais
evidentes é o monumento aos mortos, no qual figura o nome de Antoine de
Saint-Exupéry. A cruz de pedra domina a grande praça, rebatizada Place
Saint-Exupéry em 1991, e os plátanos proporcionam uma sombra hospitaleira ao
terraço de um café. As ruelas foram asfaltadas há tempo; as casas são as mesmas
do início do século, antigas quintas cinzentas com o teto pontudo característico
dos vales do Baixo Jura, onde a neve pode ser abundante e tenaz.
Marie de Saint-Exupéry com Antoine e François no carrinho (F'réderic d'Agay) |
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