terça-feira, 30 de maio de 2017

A VIDA DE SAINT-EXUPÉRY - 35


            Quando Guillaumet recuperou as forças, foi organizada uma festa em seu apartamento de Buenos Aires. A exuberância demonstrada por Saint-Exupéry naquela ocasião ainda era lembrada diversos anos mais tarde. Ele entoou canções obscenas a todo volume, interrompendo-se apenas para perguntar ao amigo se não tinha percebido aviões em sua busca. Pelo menos duas vezes o piloto acidentado ouvira um avião dar voltas acima das montanhas, e a alegria de Saint-Exupéry aumentou quando ficou evidente que ele estava pilotando um dos aviões.

            Henri e Noëlle Guillaumet tinham se casado no ano anterior e, ao raiar do dia, tiveram de expulsar Saint-Exupéry para ficarem um pouco tranquilos. Antoine os visitava praticamente todas as noites, acompanhando-os ao cinema, ao night-club ou ao parque de diversões. Às vezes cochilava no divã, e era preciso ajudá-lo a descer para encontrar um táxi. Uma vez em que desceu sozinho foi encontrado dormindo no elevador, algumas horas mais tarde.

            Os Guillaumet também tiveram de se acostumar com uma longa série de suas namoradas. O Saint-Exupéry de Correio Sul, que não acreditava em encontros fortuitos, descobrira as alegrias da celebridade numa profissão que atraía multidões de admiradoras. Seu título aristocrático e seu sucesso literário aumentavam seu charme, mas todos os pilotos eram admirados tanto quanto os ases do mundo esportivo. Embora não apreciasse de forma alguma a comparação com os toureiros, os aviadores possuíam a mesma aura de coragem e sangue frio, que Saint-Exupéry explorava para aumentar a lista das que chamava de suas “pequenas”, suas conquistas de solteiro.

            O intenso sentimento de fraternidade sentido durante o salvamento de Guillaumet reforçara sua convicção de que não fora feito para as responsabilidades de chefe, preferindo ser apenas um membro do grupo. Seu cargo de diretor do tráfego, devendo sancionar casos de atraso ou acidente, mesmo quando a culpa não era do piloto, o distanciava de seus homens. Em Voo Noturno, Saint-Exupéry critica implicitamente seu alter ego, o inspetor Robineau, que sente prazer em exercer o poder delegado por Rivière sobre a tripulação. Entrelinhas, admite que as decisões que tomava eram apenas a aplicação tolamente repetitiva da severidade cuidadosamente estudada de Rivière.

             Ao multar os pilotos que infringiam as instruções, Robineau justifica suas decisões pela necessidade de obedecer ao regulamento da linha. Em compensação, Rivière entende que regras estritas são indispensáveis. Para os leigos, elas parecem tão absurdas quanto os rituais religiosos, mas, segundo Rivière, elas “formavam homens”. Voo Noturno é um discurso em favor de uma autoridade como a dos jesuítas e de uma doutrina rígida de mando; por isso parece paradoxal que Saint-Exupéry tenha evitado a responsabilidade, preferindo ser visto como simples soldado e não como oficial. Mesmo durante a guerra, tendo mais idade que a maioria dos pilotos, recusou todas as ofertas de comando.

            É evidente que sua extrema ansiedade, que frequentemente lhe provocava excessivos remorsos ou dúvidas, deve ser uma das razões de sua atitude. Um dos raros exemplos conhecidos de sanção tomada por Saint-Exupéry, com exceção das punições provavelmente fictícias infligidas por Robineau, é atribuída a Rivière, aliás, Daurat, em Voo Noturno, como se Antoine não pudesse assumir pessoalmente a ação. Um mecânico chamado Roblet é dispensado por incompetência por Rivière, embora tenha trabalhado vinte anos na aeronáutica e construído o primeiro avião que voou na Argentina. Rivière se pergunta se não foi injusto ao demitir esse homem, até que os controladores de voo comentam a chegada de um avião cujos instrumentos deixaram de funcionar após uma montagem malfeita atribuída a Roblet.

           
Didier Daurat, Diretor de Operações da Aéropostale,
veterano da Primeira Guerra, mentor de Saint-Exupéry,
e personagem em vários de seus livros.
Roblet realmente existiu e foi obrigado a pedir demissão pelo próprio Saint-Exupéry, segundo Paul Descendit, que foi mecânico-chefe na Latécoère. Ele justificou a demissão considerando Roblet fisicamente incapaz de efetuar seu trabalho, que exigia “ser jovem, robusto e gozar de boa saúde”. É provável que outras decisões, baseadas em regulamentos severos, tenham suscitado tenazes ressentimentos. Uma vez Saint-Exupéry aplicou uma multa de 200 pesos a um piloto de correio por ter vindo socorrê-lo após uma aterrissagem forçada. Se o aviador tivesse seguido as instruções de Daurat, teria de encaminhar sua carga de correio à base mais próxima antes de ajudar seu chefe.

            Saint-Exupéry teria podido eventualmente aceitar a justa demissão de um elemento duvidoso da rede aérea, porém nunca teria suportado, como Daurat, forçar as tripulações a assumirem riscos enormes, por mais nobres que fossem. O acidente relatado em Voo Noturno está inspirado em outro, real, ocorrido na baía de Montevidéu em maio de 1930, que custou a vida de um piloto de Latécoère, Élysée Négrin. Outras três pessoas lá encontraram a morte, entre elas Julien Pranville, antigo assistente de Daurat em Toulouse, enviado para dirigir as operações na América do Sul.

            Nos quinze meses anteriores, Daurat perdera seis pilotos e três encarregados de rádio, mas esse acidente era particularmente de mau augúrio. Pranville chegara a Natal, Brasil, para receber a primeira conexão aérea por hidravião realizada por Mermoz e organizada por Daurat, entre a África e a América do Sul. O acidente provocou o questionamento do novo serviço, mas Daurat não ficou perturbado. Manteve o voo inaugural, que saiu do Senegal em 12 de maio de 1930, carregado com 150 quilos de correspondência vindas de Toulouse num tempo recorde de 25 horas.

            Jean Mermoz pilotava o Latécoère 28, Comte de la Vaulx, num dos voos de longa distância mais importantes da história da aviação, iniciando assim a conexão correio e passageiros sobre o Atlântico sul. O voo inspirou um trecho espetacular de Terra dos Homens, no qual Saint-Exupéry relata a descrição de Mermoz dos gigantescos tornados marinhos elevando-se na superfície do oceano Atlântico como os negros pilares de um templo.

            Apesar das perturbações climáticas ameaçadoras, o correio foi transportado por etapas da França à África, sobre o Atlântico e a América do Sul, para chegar à costa do Pacífico apenas quatro dias e meio após a decolagem de Toulouse. O acontecimento provocou um grande alvoroço na América do Sul, onde os aviadores da Aéropostale foram celebrados como heróis folclóricos em canções populares.

            Seis anos mais tarde, Saint-Exupéry foi entrevistado por um jornal francês, La Flèche, após a morte de Mermoz em outra travessia do Atlântico. Nesse artigo existe uma frase notável. Referindo-se às façanhas daquele período, Saint-Exupéry dizia que todos os pilotos sentiam ter realizado um grande esforço e cumprido um dever quando conseguiam completar com sucesso um voo particularmente perigoso. “Mermoz sentia isso mais do que ninguém”, acrescentou. “Possuía uma espécie de júbilo interior, um sentimento confuso porém seguro de que nós, enquanto homens, tínhamos nos tornado mais nobres.”

            Saint-Exupéry não pode desempenhar um papel ativo no recorde entre o sul da França e o Pacífico por estar preso a seu escritório de Buenos Aires, morrendo de inquietação pelos longos silêncios quando o contato com o rádio era interrompido. Para ele, o “júbilo interior” limitou-se a felicitar os colegas pela proeza. Após essa experiência, deixou de ambicionar escalões hierárquicos mais altos. Sonhava apenas com voltar à rotina de piloto de correio. Os meses posteriores deram à sua vida pessoal, bem como à sua carreira profissional e literária, um curso acidentado, no qual se originaram várias das decepções de seu turbulento casamento com Consuelo Suncin.

Antoine e Guillaumet diante do avião

 

            

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