segunda-feira, 15 de maio de 2017

TERRA DOS HOMENS - PARTE 4

           Mas que estranha lição de geografia recebi! Guillaumet não me ensinava a Espanha: ele fazia da Espanha uma amiga para mim. Não me falava nem de hidrografia, nem de populações, nem de pecuária. Não me falava de Guadix, mas de três laranjeiras que existem em um campo, próximo a Guadix: “Desconfie delas; é bom assinalá-las aí no mapa...” E as três laranjeiras tomavam mais espaço na carta que a serra Nevada. Não me falava de Lorca, mas de uma simples fazenda perto de Lorca. Uma fazenda viva. E falava do fazendeiro. E da fazendeira. E aquele casal perdido no espaço, a quinhentos quilômetros de nós, assumia uma importância desmesurada. Bem-instalados na vertente de sua montanha, como guardas de um farol, sob as estrelas, aquele homem e aquela mulher estavam sempre prontos a socorrer homens.
Tirávamos assim do esquecimento, de sua inconcebível obscuridade, detalhes ignorados de todos os geógrafos do mundo. Porque só o Ebro, que mata a sede das grandes cidades, interessa aos geógrafos. Não aquele córrego escondido sob a erva a oeste de Motril, aquele pequeno córrego que alimenta umas trinta flores... “Desconfie deste córrego, ele encharca os campos... Tome nota dele na carta.” Ah, eu haveria de me lembrar da serpente de Motril! Parecia não ser nada. Com seu leve murmúrio, ela talvez apenas enfeitiçasse e atraísse algumas rãs — mas estava sempre vigilante, não dormia. No paraíso do campo de emergência, estendida sob a erva, ela me esperava, a dois mil quilômetros de distância, pronta, na primeira ocasião, a me transformar em uma tocha flamejante...
E aqueles trinta carneiros, dispostos para o combate no flanco de uma colina, prontos a avançar: “Você pensa que este prado está desimpedido, e de repente — zás! — olha trinta carneiros disparando sob as rodas...” E eu respondia com um sorriso maravilhado a uma tão pérfida ameaça.
Assim, pouco a pouco, a Espanha de minha carta se transformava, sob a lâmpada, em um país de conto de fadas. Marquei com uma cruz os refúgios e as ciladas. Assinalei aquele fazendeiro, aqueles trinta carneiros, aquele córrego. No seu lugar exato, assinalei aquela pastora desprezada pelos geógrafos.

Quando me despedi de Guillaumet, senti necessidade de andar pela noite gelada de inverno. Ergui a gola do sobretudo e, entre os transeuntes ignorantes, passeei o meu jovem fervor. Senti-me orgulhoso em acotovelar aqueles desconhecidos com o meu segredo no coração. Eles me ignoravam, aqueles bárbaros — mas suas preocupações, seus ardores, era a mim que eles confiariam pela madrugada, dentro dos sacos postais. Às minhas mãos confiariam suas esperanças. Assim, embrulhado em meu capote, eu dava entre eles meus passos de protetor — e eles nada sabiam de minha solicitude.
De resto, não recebiam as mensagens que me vinham da noite. Aquela tempestade de neve que talvez estivesse se preparando interessava a minha própria carne. Talvez viesse complicar minha primeira viagem... As estrelas se apagavam uma a uma. Como o haveriam de notar aqueles homens que passeavam? Só eu o percebia, como se fora um segredo. Alguém me comunicava as posições do inimigo antes da batalha...
E aqueles avisos tão graves para mim, eu os recebia perto das vitrinas iluminadas, onde os presentes de Natal brilhavam. Ali pareciam estar expostos, naquela noite, todos os bens da Terra — e eu experimentava a embriaguez orgulhosa da renúncia. Era um guerreiro ameaçado: que me importavam aqueles cristais cintilantes para as festas da noite, aqueles abajures, aqueles livros? Eu já me banhava nas brumas do céu; eu, piloto de linha, já mordia a polpa amarga das noites de voo.

Henri Guillaumet e Antoine de Saint Exupéry

Nenhum comentário:

Postar um comentário