domingo, 14 de maio de 2017

CIDADELA - PARTE 4

Vi as mulheres chorarem os guerreiros mortos. Mas fomos nós que as enganamos! Viste voltarem da guerra os sobreviventes, gloriosos e arrastados, gritando aos quatro ventos as façanhas realizadas, trazendo como penhor do risco corrido a morte dos outros, morte para eles horrível, pois poderia ter ocorrido a eles. Eu mesmo, na juventude, gostava de sentir à minha volta os golpes de sabre que outros recebiam. Quando voltava exaltava os companheiros mortos e seu terrível desespero. Mas aquele que a morte escolheu, ocupado a vomitar sangue ou conservar as entranhas, descobre a verdade — que não há horror algum na morte. O próprio corpo se mostra instrumento que se torna inútil e que já não serve para nada e que ele rejeita. Um corpo desmantelado que se mostra em todo seu desgaste. E se esse corpo tem sede, o moribundo só vê nisso uma ocasião de sede, que gostaria de saciar. E todos os bens se tornam inúteis, eles que serviam para aprontar, alimentar, festejar esse corpo meio estranho, apenas uma propriedade doméstica, como um burro atado à sua argola.
                Começa então a agonia, que não passa de oscilação da consciência ora vazia ora cheia com as marés da memória. Vão e vêm como o fluxo e o refluxo, trazendo, como tinham levado, todas as provisões de imagens, todas as conchas da recordação, todos os búzios de todas as vozes ouvidas. Sobem, banham de novo as algas da alma, e aí temos todas as ternuras reanimadas. Mas o equinócio prepara o refluxo decisivo, a alma se esvazia, a maré e as suas provisões reentram em Deus.
                Sim, já vi gente fugir da morte, pegos de surpresa pelo confronto. Mas aquele que morre, não se enganem, nunca o vi se apavorar.

                Então por que os lastimar? Porquê perder meu tempo a chorar seu fim? Conheço bem a perfeição dos mortos. Nada mais frágil conheci do que a morte daquela cativa que marcou meus dezesseis anos e que, quando a trouxeram, já toda ela se ocupava em morrer, ofegante e escondendo a tosse entre os lençóis, já sem folego como a gazela, forçando um sorriso sem notar, porque sempre costumava sorrir. Mas esse sorriso era vento num regato, rastro de um sonho, esteira de um cisne, dia a dia mais depurado e mais precioso e mais difícil de conservar, até se tornar essa linha simples e puríssima, que fica quando o cisne já se foi embora.

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