terça-feira, 23 de maio de 2017

CORREIO SUL - 5

             Vista lá de cima, a terra parece nua e morta; quando o avião desce, ela se veste. Os bosques voltam a estofá-la; os vales e as colinas nela imprimem uma ondulação: a terra respira. A montanha que se sobrevoa — peito de gigante deitado — incha-se quase até o avião.
            Agora próximo, o curso das coisas se acelera, como a torrente sob uma ponte. É a derrocada deste mundo unido. Árvores, casas, vilas separam-se do horizonte liso e são arrastadas atrás dele, à deriva.
            O campo de Alicante oscila, aumenta, localiza-se; as rodas o roçam, atingindo-o como um laminador, afiam-se...
            Com as pernas pesadas, Bernis deixa a carlinga. Cerra por um instante os olhos; imagens vivas e o barulho do motor continuam a borbulhar na sua cabeça e os membros parecem trepidar ainda, como carregados pelas vibrações do aparelho. Entra depois no escritório, onde se senta com lentidão, empurra alguns livros e o tinteiro com o cotovelo, e retira o caderno de rota do  
            Toulouse—Alicante: 5hl5 de voo.
            Dominado pelo cansaço e pelo sono, ele para. Um ruído confuso chega até ele. Ouve-se uma voz de mulher que grita. O chofer do Ford abre a porta, desculpa-se, sorri. Bernis observa cuidadosamente as paredes, a porta, e esse chofer que surgiu ali, de repente, em tamanho natural. Por dez minutos, mistura-se a uma discussão que não entende, a gestos que se iniciam, que se concluem. Essa visão é irreal. Uma árvore plantada diante da porta reside há mais de trinta anos. Há trinta anos fornece uma imagem.
            Motor: nada a assinalar.
            Avião: pende para a direita.
            Apenas um pensamento domina-o ao largar a caneta: "Tenho sono”, e é ainda o sono que se impõe, comprimindo sua fronte.
            Uma luz de ambarina envolve a paisagem tão clara: prados e campos bem limpos. À direita, avulta-se uma vila; à esquerda, um minúsculo rebanho e, limitando-o, a abóbada de um céu azul. “Uma casa”, pensa Bernis. Lembra-se de que imaginou, uma vez, numa súbita evidência, que a paisagem, o céu, a terra eram construídos como uma habitação. Habitação familiar, ordenadamente composta. Cada objeto apresenta-se verticalmente. Nenhuma ameaça, nenhuma fenda naquela visão una. Sentia-se como no interior da paisagem.
            Da mesma forma, à janela da sala, as velhas senhoras sentem-se eternas. A relva é fresca, o lento jardineiro rega as flores. Elas acompanham com o olhar o seu dorso tranquilizador. Um odor de cera exala do assoalho brilhante, maravilhando-as. É pacífica a ordem no lar: o dia passou, arrastando atrás de si o vento, o sol e os aguaceiros que destruíram apenas algumas rosas.
            “Está na hora. Adeus.” Bernis parte novamente.
            Entra na tempestade que ataca o aparelho como as enxadas do demolidor: já viu tantas, passará essa também. Agora, Bernis tem apenas pensamentos rudimentares, pensamentos que dirigem a ação: livrar-se desse cinturão de montanhas para onde o tornado descendente o lança, onde a chuva com ventania é tão espessa que parece já ser noite; transpor esse paredão, atingir o mar.
            Um choque! Algum estrago? Repentinamente, o avião pende para a esquerda. Bernis o sustenta com uma das mãos, depois com ambas e em seguida com todo o corpo. "Nossa Senhora!” O aparelho retoma seu peso em direção à terra. Bernis está arruinado. Mais um segundo e aquela casa arruinada que vira num relance se extinguirá para sempre de seus olhos. Planícies, florestas, vilas jorrarão da terra, contra ele, em espiral. Fumaça das aparências, espirais de fumaça, fumaça! Rebanhos precipitados aos quatro cantos do céu...
            "Ah!... Que susto...” Um movimento com o calcanhar e consegue soltar um cabo. O comando estava preso. Por quê? Sabotagem? Não. Nada de importância: um golpe de calcanhar restabeleceu o mundo. Que aventura!
            Uma aventura? Daquele instante fica apenas um gosto na boca, um amargar da carne. Mas essa falha prevista! Por um momento, tudo passou, ante seus olhos, como num passe mágico: estradas, canais, casas, brinquedos dos homens!...

            Tudo passou; tudo acabou. Aqui, o céu está claro. O boletim meteorológico predissera: “Um quarto de céu coberto de cirros.” O boletim meteorológico? Os isóbares? Os “sistemas nebulosos” do professor Borjsen? Um céu de festa popular, isso sim. Um céu de 14 de julho. Era preciso dizer: “Em Málaga é dia de festa!” Cada habitante possui dez mil metros de céu puro sobre si. Um céu que se prolonga até os cirros. Jamais o aquário se mostrou tão brilhante, tão vasto. E como se fosse uma tarde de regata no golfo: céu azul, mar azul, gola azul e olhos azuis do capitão. Feriado luminoso.
            Concluída a tarefa. Transportaram-se trinta mil cartas.
            A companhia pregava: correio precioso, correio mais precioso do que a própria vida. Sim, pois dele se alimentam trinta mil amantes... Paciência, amantes! Nós vos alcançaremos no calor da noite. Atrás de Bernis, nuvens espessas, agitadas pela ventania numa cuba. À sua frente, uma terra vestida de sol, o tecido claro das planícies, a lã dos bosques, o véu franzido do mar.
            Será noite na altura de Gibraltar. Então, uma curva para a esquerda em direção a Tânger afastará dos olhos de Bernis a Europa, como um enorme iceberg à deriva.
            Algumas cidades ainda nutridas da terra escura, depois a África. Algumas cidades ainda alimentadas de uma negra massa, depois o Saara. Esta noite Bernis assistirá ao despir-se da terra.

            Bernis sente-se fatigado. Dois meses antes, subia até Paris, à conquista de Geneviève. Regressou ontem à companhia, depois de ter posto em ordem a sua derrota. As planícies, as cidades, as luzes que se afastam, é ele que as abandona. Quem se despe delas. Dentro de uma hora, o farol de Tânger se acenderá: até o farol de Tânger, Jacques Bernis recordará a sua vida.

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