Em 1898, foi criado o Aeroclube da França. Com o intuito de estimular a competição e ao mesmo tempo estabelecer marcos históricos definitivos, o Aeroclube criou prêmios que seguiam critérios básicos. Para a dirigibilidade dos balões, foi definido que a experiência seria pública, realizada diante de uma comissão oficial e com data marcada, para evitar que fatores como condições climáticas favorecessem algum concorrente. “Até então, a prática comum era levar um cientista de renome para observar a demonstração e escrever um parecer, mas os relatos eram subjetivos e carregados de emoção”. Em outubro de 1901, o Prêmio Deutsch – oferecido pelo magnata do petróleo Henri Deutsch de la Meurthe, no valor de 50 mil francos – foi arrematado por Santos Dumont, após contornar a Torre Eiffel a bordo de um dirigível. Sua principal inovação foi acoplar um motor de combustão interna movido a gasolina (que depois ele usaria nos aviões) a um balão de hidrogênio.
No entanto, definir o que seria um voo de
avião seria um desafio bem maior. O assunto era polêmico, e muitas pessoas
sequer acreditavam na possibilidade de algo mais pesado do que o ar levantar
voo. A descrença era comum até a célebres cientistas. Em 1895, o físico e
matemático britânico Lord Kelvin declarara que “máquinas voadoras mais pesadas
que o ar são impossíveis”. A ciência, porém, avança contrariando o impossível,
e homens cheios de imaginação se lançaram ao sonho de voar. O francês Clément
Ader montou um aeroplano em forma de morcego, que chegou a perder contato com o
chão, sem ganhar, no entanto, altitude. Samuel Langley, dos EUA, conseguiu
fazer um pequeno modelo não-tripulado voar. Entretanto, era Otto Lilienthal
quem causava sensação na crítica especializada e de longe se tornara o
preferido do público. Voando em planadores inspirados nos pássaros, o alemão
mostrou que um voo eficiente era possível.
Para
o Aeroclube francês, no entanto, planar não era o mesmo que voar. Ainda se
discutiam os critérios para determinar o prêmio do primeiro voo de aparelho
mais pesado do que o ar, quando, em 1903, chegou à Europa a notícia de que os
Wright haviam realizado os primeiros voos controlados em um avião. Porém, a
única evidência era um telegrama escrito pelos próprios irmãos, contando terem
voado contra ventos de cerca de 40 quilômetros por hora. Nos dois anos
seguintes, os rumores eram de que eles haviam percorrido distâncias cada vez
maiores, chegando a impressionantes 39 quilômetros. “Mas os irmãos não
divulgavam uma foto sequer, e não permitiam que testemunhas neutras
acompanhassem o experimento”. Os franceses ignoraram o feito, por falta de
provas concretas e também devido ao vento forte, que ajuda o avião a decolar.
Estabeleceu-se
que o voo deveria ser feito com tempo calmo, e que o aparelho fosse capaz de
alçar voo sem ajuda de elementos externos (o vento ou uma catapulta, por
exemplo). Como no caso dos balões, a façanha deveria ser acompanhada por uma
comissão oficial. E foi assim que, no dia 23 de outubro de 1906, foi realizado
o primeiro voo homologado da história. Nos campos de Bagatelle, em Paris, na
presença de juízes e de uma multidão de curiosos, Santos Dumont pilotou seu 14
Bis por exatos 60 metros, a uma altura entre 2 e 3 metros. “O homem conquistou
o ar!”, gritavam as pessoas em terra firme. Pelo feito, o brasileiro recebeu
prêmio de 3 mil francos oferecido por Ernest Archdeacon, um dos fundadores do
Aeroclube. Menos de um mês depois, em 12 de novembro, ele voou ainda mais
longe, 220 metros (a 6 metros de altura), batendo o próprio recorde.
Enquanto
isso, os irmãos Wright mantinham segredo sobre sua invenção, apesar dos
convites para que fossem demonstrá-la na Europa. “Um dos motivos pelos quais os
americanos se recusavam a participar dos eventos franceses era que seu avião,
para decolar, usava uma catapulta, com um peso de 700 kg que descia de uma
torre e impulsionava o aparelho para o voo, algo totalmente fora do parâmetro
dos europeus”. Outra razão para mistério era o medo de que sua ideia fosse
roubada. Em 1904, a Feira Mundial de Saint Louis ofereceu prêmio para quem
conseguisse voar, mas eles não compareceram. Em 1905 e 1906, tentaram vender o
projeto da máquina voadora para o Ministério da Guerra dos EUA e depois para o
governo francês, mas recusaram-se a fazer demonstrações e por isso o negócio
não foi para a frente.
O
primeiro voo público documentado dos irmãos Wright ocorreu pela primeira vez,
em 21 de setembro de 1908, em Anvours (França). Porém, isso ocorreu dois anos
após Santos Dumont já ter conquistado os primeiros recordes aeronáuticos
oficiais, e na época em que nosso pioneiro já voava há um ano com sucesso o seu
avançado Demoiselle, e quando a aviação demonstrava
progresso acelerado em várias partes do mundo.
As
provas dos voos que teriam sido feitos em 1903 foram apresentadas pelos irmãos
Wright extemporaneamente. Somente em 1908, mostraram: uma foto sem data do
Flyer (sem rodas, a alguns palmos de altura sobre o trilho lançador); o diário
deles, onde diziam terem voado n metros por t segundos nas datas x, y, z; e um
telegrama passado por eles mesmos ao pai. Na época, essas evidências dos voos
de 1903 foram consideradas insubsistentes pelos órgãos oficiais de aviação e
pela imprensa em geral, inclusive a norte-americana, que então divulgava a
primazia de Santos Dumont.
Cerca
de vinte anos mais tarde, os EUA resolveram elevar os irmãos Wright à condição
de primazia e aquelas provas, antes sem valor, passaram a ser citadas como
documentos históricos comprovadores dos voos pioneiros. Fruto de grande esforço
institucional e de mídia, as antes desacreditadas alegações pouco a pouco
viraram fatos para o povo norte-americano e para muitos no mundo inteiro.
Todavia,
não há registro de algum vizinho dos Wright, ou de qualquer dos transeuntes da
estrada próxima, de intenso movimento, ter visto ao menos um dentre as centenas
de voos que eles afirmaram ter realizado de 1903 a 1908. Nem uma única
reportagem comprovando aqueles voos havia sido, até 1908, publicada pela
perspicaz, eficiente e já mundialmente atuante imprensa norte-americana. Nem
mesmo em Kitty Hawk, North Carolina, e em Dayton, Ohio, onde eles teriam
realizado os alegados pioneiros, surpreendentes, fantásticos e longos voos.
Caso houvesse crédito na realização dos aludidos voos, eles teriam merecido,
inevitável e imediatamente, gigantescas manchetes nos jornais dos EUA e do
mundo todo.
Na
comparação, do ponto de vista aerodinâmico, o avião do brasileiro sai perdendo.
Baseado no conceito das células de Hargrave (caixotes vazados como em pipas
japonesas), o 14 Bis acabou ultrapassado. Porém, trouxe inovações importantes:
o trem de pouso e os ailerons, que permitem a inclinação para os lados,
conferindo maior estabilidade. E há quem defenda que a aeronave dos Wright
sequer possa ser considerada um avião. “O que eles inventaram não passa de um
planador motorizado. Muita gente se surpreende ao saber sobre a catapulta”.
A
polêmica está estabelecida, e é provável que jamais possamos dizer com certeza
quem foi o primeiro homem a voar em algo que seja considerado um avião. Porém,
há um fato curioso. Quase 100 anos depois do feito de Santos Dumont, o 14 Bis
voltou a ganhar os céus. Ou quase: trata-se de uma réplica, construída pelo
coronel paulista Danilo Flôres Fuchs, que pilotou seu avião diversas vezes,
inclusive uma em São Paulo, em 1989, e outra em Paris, em 1991. “Ele é bastante
estável e é possível atingir distâncias maiores de 1 quilômetro”, diz Fuchs.
Nos EUA, sonha-se fazer o mesmo com o Flyer. Existe até uma fundação, a
Discovery of Flight Foundation, que se dedica a estudar a façanha dos Wright,
construindo réplicas e tentando fazê-las voar. Até hoje, não conseguiram.
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