Da República da Espada ao
condomínio de fazendeiros: a consolidação da ordem republicana
O GOLPE CONTRA A MONARQUIA
Quando
observamos o famoso quadro Proclamação da República, pintado por Benedito
Calixto em 1893, podemos ter a falsa sensação de que o nascimento do regime
republicano no Brasil foi um desfile militar cívico e ordeiro: as linhas retas
do quadro, com seus personagens alinhados; o plano geral da cena que organiza a
tela e nos transmite uma sensação de ordem pública; a praça ocupada pelos
militares em formação, ouvindo e aclamando seus comandantes que, solenemente,
erguem os braços. Aliás, é bem provável que o objetivo do quadro fosse esse
mesmo, de acordo com as regras ufanistas da pintura histórica do século XIX: cristalizar
a imagem de um momento histórico grandioso e de personagens heroicos, pautados
pela ordem e pelo civismo, minimizando a ruptura republicana com a velha ordem
política da Monarquia. A representação de um desfile militar tranquilo, que
seria uma espécie de certidão de nascimento do novo regime, seria complementada
com outra imagem consagrada na nossa memória nacional: a do povo que “assistira
a tudo bestializado”, nas palavras do jornalista Aristides Lobo, e que estava
ausente daquele momento histórico, ao menos na famosa tela e na “história
oficial” da “proclamação da República”, conforme ensinada pelos livros
didáticos por muito tempo. Mas será que o nascimento da República no Brasil foi
tão tranquilo assim? Será que o Exército foi o único protagonista do
republicanismo que derrubou o Império no Brasil?
Proclamação da República, óleo sobre tela de Benedito Calixto, 1893 (acervo Pinacoteca do Estado de São Paulo ) |
Muitos
historiadores ainda se perguntam: o golpe militar liderado pelo marechal Deodoro
da Fonseca queria mesmo derrubar o regime monárquico ou apenas o ministério
liderado pelo visconde de Ouro Preto, o último gabinete da Monarquia? Deodoro
não era um conspirador republicano, ao contrário da jovem oficialidade que abraçava
os ideais do positivismo e do republicanismo. Mas, para manter sua liderança no
Exército, sabia que não poderia reprimir seus subordinados, amplamente
abolicionistas e republicanos. Apesar de envolvido nos conflitos que opuseram o
Exército e a Monarquia a partir da chamada “Questão Militar” (1884-1887) -
quando o governo imperial acabou punindo oficiais abolicionistas Deodoro ainda
afirmava, em carta a seu sobrinho datada de setembro de 1889, que o “único sustentáculo
do Brasil era a Monarquia”. Entretanto, o velho marechal tinha seus desafetos
entre os que apoiavam D. Pedro n, como, por exemplo, Gaspar Silveira Martins,
inimigo político e pessoal de Deodoro no Rio Grande do Sul, a agitada província
na qual o marechal tinha feito carreira militar e política. No Campo da
Aclamação (atual Praça da República), dizia-se que Deodoro derrubou o
ministério Ouro Preto, mas não a Monarquia, que de fato foi derrubada somente à
tarde, com o marechal aderindo à causa republicana, depois de ser informado que
Gaspar Silveira Martins, seu antigo desafeto político, seria o novo
“primeiro-ministro”.
Outro
ex-monarquista, José do Patrocínio, lavrou a “Ata de Proclamação” do novo
regime, inaugurando-o por decreto:
Concidadão:
o povo, o Exército e a Armada nacional, em perfeita comunhão de sentimentos com
nossos concidadãos residentes nas províncias, acabam de decretar a deposição da
dinastia imperial, e consequentemente, a extinção do sistema monárquico-representativo.
(Gazeta de Notícias, 16/11/1889)
Obviamente,
a implantação da República no Brasil não aconteceu só por causa de decretos,
ações motivadas por desafetos ou iniciativas individuais de algumas lideranças
civis e militares. A Monarquia estava em crise havia muito tempo,
desprestigiada entre as elites civis e militares mais importantes, apesar de,
paradoxalmente, contar com certo apoio popular.
O
visconde de Ouro Preto, membro do Partido Liberal, foi empossado como
primeiro-ministro em junho de 1889 com a promessa de arejar e modernizar,
politicamente falando, a Monarquia brasileira que, depois da abolição da
escravidão (13 de maio de 1888), parecia ter perdido sua identidade e sua razão
de ser. Seu projeto de reforma política tentava incorporar algumas bandeiras do
movimento republicano, lançado pelo Manifesto de 1870, como a maior autonomia
administrativa nara as provincias (os futuros estados), o fim dos senadores
vitalícios e a diminuição dos poderes para o Conselho de Estado, restrito e
seleto órgão que era o pilar das decisões políticas estratégicas da Monarquia,
sendo frequentemente mais importante que o próprio Parlamento eleito. Mas o
Partido Conservador, o outro partido importante do Império, não queria mais
mudanças no regime e bloqueava essas medidas no Parlamento.
Desde
a década de 1870, a ideia de que o melhor regime para o Brasil seria uma
república crescia entre as oligarquias das províncias mais ricas (como São
Paulo, Rio Grande do Sul e Minas Gerais), bem como entre os militares, por
motivos diferentes dos oligarcas. Para as primeiras, a Monarquia dificultava o
acesso às decisões políticas do governo central, dominado pelos partidos monarquistas
tradicionais — Liberal e Conservador — e por instituições fechadas, como o
Senado Vitalício e o Conselho de Estado. Além disso, havia o poder pessoal do
imperador, institucionalizado no Poder Moderador, capaz de dissolver o
Parlamento e o Ministério. Mesmo tendo importância econômica, enriquecida pela
exportação do café e pela exploração da economia pecuária, os membros das
oligarquias paulista, mineira e gaúcha se sentiam sub-representados na vida
política brasileira. E se a grande função da Monarquia era ser o pilar da
manutenção do regime escravista, extinto esse sistema em 1888, para que
mantê-la? Por que não dirigir o país sem a mediação de uma elite política
(conselheiros e senadores que pareciam mais antiquados que o próprio imperador)
parada no tempo?
Para
os militares do Exército, o problema da Monarquia era outro. Mesmo valorizado
simbolicamente pela nação brasileira como vencedores da Guerra do Paraguai, o
Exército se sentia desprestigiado como corporação pelo governo. Os militares
também criticavam a escravidão; muitos oficiais se manifestavam publicamente
pela abolição, o que era proibido, e se recusavam a servir de caçadores de
escravos fugidos. O princípio de recrutamento entre cidadãos livres, base dos
exércitos nacionais criados ao longo do século XIX, e o princípio de promoção
na carreira militar em função da formação técnica e do mérito pessoal entravam
em choque com o mundo da Monarquia brasileira, onde imperavam a escravidão e o
clientelismo no qual, para subir na oara
subir na carreira militar, manter boas relações com a nobreza era mais importante
do que o valor e o mérito individuais.
Foram
estes grupos, ao lado de líderes republicanos populares, como Silva Jardim e
Lopes Trovão, que ajudaram a desgastar politicamente a imagem da Monarquia
junto à sociedade. Quando foi derrubada pelo golpe liderado por Deodoro da
Fonseca, a Monarquia já era um regime que tinha perdido apoios fundamentais
entre as elites civis e militares. Já não havia ninguém para defendê-la de
maneira vigorosa, a não ser alguns poucos senhores de escravos extremamente
conservadores, principalmente da outrora importante região do vale do Paraíba (sp/rj).
A resignação do velho imperador ao rumar para o exílio dourado em Paris, sem
esboçar grande reação ao golpe de Estado, é o melhor retrato da deterioração do
antigo regime. Até Pedro li parecia estar cansado da Monarquia.
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