segunda-feira, 22 de maio de 2017

O Brasil na época de Saint-Exupéry - 1

Da República da Espada ao condomínio de fazendeiros: a consolidação da ordem republicana

O GOLPE CONTRA A MONARQUIA

            Quando observamos o famoso quadro Proclamação da República, pintado por Benedito Calixto em 1893, podemos ter a falsa sensação de que o nascimento do regime republicano no Brasil foi um desfile militar cívico e ordeiro: as linhas retas do quadro, com seus personagens alinhados; o plano geral da cena que organiza a tela e nos transmite uma sensação de ordem pública; a praça ocupada pelos militares em formação, ouvindo e aclamando seus comandantes que, solenemente, erguem os braços. Aliás, é bem provável que o objetivo do quadro fosse esse mesmo, de acordo com as regras ufanistas da pintura histórica do século XIX: cristalizar a imagem de um momento histórico grandioso e de personagens heroicos, pautados pela ordem e pelo civismo, minimizando a ruptura republicana com a velha ordem política da Monarquia. A representação de um desfile militar tranquilo, que seria uma espécie de certidão de nascimento do novo regime, seria complementada com outra imagem consagrada na nossa memória nacional: a do povo que “assistira a tudo bestializado”, nas palavras do jornalista Aristides Lobo, e que estava ausente daquele momento histórico, ao menos na famosa tela e na “história oficial” da “proclamação da República”, conforme ensinada pelos livros didáticos por muito tempo. Mas será que o nascimento da República no Brasil foi tão tranquilo assim? Será que o Exército foi o único protagonista do republicanismo que derrubou o Império no Brasil?

Proclamação da República, óleo sobre tela de Benedito Calixto, 1893
(acervo Pinacoteca do Estado de São Paulo ) 

            Muitos historiadores ainda se perguntam: o golpe militar liderado pelo marechal Deodoro da Fonseca queria mesmo derrubar o regime monárquico ou apenas o ministério liderado pelo visconde de Ouro Preto, o último gabinete da Monarquia? Deodoro não era um conspirador republicano, ao contrário da jovem oficialidade que abraçava os ideais do positivismo e do republicanismo. Mas, para manter sua liderança no Exército, sabia que não poderia reprimir seus subordinados, amplamente abolicionistas e republicanos. Apesar de envolvido nos conflitos que opuseram o Exército e a Monarquia a partir da chamada “Questão Militar” (1884-1887) - quando o governo imperial acabou punindo oficiais abolicionistas Deodoro ainda afirmava, em carta a seu sobrinho datada de setembro de 1889, que o “único sustentáculo do Brasil era a Monarquia”. Entretanto, o velho marechal tinha seus desafetos entre os que apoiavam D. Pedro n, como, por exemplo, Gaspar Silveira Martins, inimigo político e pessoal de Deodoro no Rio Grande do Sul, a agitada província na qual o marechal tinha feito carreira militar e política. No Campo da Aclamação (atual Praça da República), dizia-se que Deodoro derrubou o ministério Ouro Preto, mas não a Monarquia, que de fato foi derrubada somente à tarde, com o marechal aderindo à causa republicana, depois de ser informado que Gaspar Silveira Martins, seu antigo desafeto político, seria o novo “primeiro-ministro”.

            Outro ex-monarquista, José do Patrocínio, lavrou a “Ata de Proclamação” do novo regime, inaugurando-o por decreto:

Concidadão: o povo, o Exército e a Armada nacional, em perfeita comunhão de sentimentos com nossos concidadãos residentes nas províncias, acabam de decretar a deposição da dinastia imperial, e consequentemente, a extinção do sistema monárquico-representativo. (Gazeta de Notícias, 16/11/1889)

            Obviamente, a implantação da República no Brasil não aconteceu só por causa de decretos, ações motivadas por desafetos ou iniciativas individuais de algumas lideranças civis e militares. A Monarquia estava em crise havia muito tempo, desprestigiada entre as elites civis e militares mais importantes, apesar de, paradoxalmente, contar com certo apoio popular.
            O visconde de Ouro Preto, membro do Partido Liberal, foi empossado como primeiro-ministro em junho de 1889 com a promessa de arejar e modernizar, politicamente falando, a Monarquia brasileira que, depois da abolição da escravidão (13 de maio de 1888), parecia ter perdido sua identidade e sua razão de ser. Seu projeto de reforma política tentava incorporar algumas bandeiras do movimento republicano, lançado pelo Manifesto de 1870, como a maior autonomia administrativa nara as provincias (os futuros estados), o fim dos senadores vitalícios e a diminuição dos poderes para o Conselho de Estado, restrito e seleto órgão que era o pilar das decisões políticas estratégicas da Monarquia, sendo frequentemente mais importante que o próprio Parlamento eleito. Mas o Partido Conservador, o outro partido importante do Império, não queria mais mudanças no regime e bloqueava essas medidas no Parlamento.
            Desde a década de 1870, a ideia de que o melhor regime para o Brasil seria uma república crescia entre as oligarquias das províncias mais ricas (como São Paulo, Rio Grande do Sul e Minas Gerais), bem como entre os militares, por motivos diferentes dos oligarcas. Para as primeiras, a Monarquia dificultava o acesso às decisões políticas do governo central, dominado pelos partidos monarquistas tradicionais — Liberal e Conservador — e por instituições fechadas, como o Senado Vitalício e o Conselho de Estado. Além disso, havia o poder pessoal do imperador, institucionalizado no Poder Moderador, capaz de dissolver o Parlamento e o Ministério. Mesmo tendo importância econômica, enriquecida pela exportação do café e pela exploração da economia pecuária, os membros das oligarquias paulista, mineira e gaúcha se sentiam sub-representados na vida política brasileira. E se a grande função da Monarquia era ser o pilar da manutenção do regime escravista, extinto esse sistema em 1888, para que mantê-la? Por que não dirigir o país sem a mediação de uma elite política (conselheiros e senadores que pareciam mais antiquados que o próprio imperador) parada no tempo?

            Para os militares do Exército, o problema da Monarquia era outro. Mesmo valorizado simbolicamente pela nação brasileira como vencedores da Guerra do Paraguai, o Exército se sentia desprestigiado como corporação pelo governo. Os militares também criticavam a escravidão; muitos oficiais se manifestavam publicamente pela abolição, o que era proibido, e se recusavam a servir de caçadores de escravos fugidos. O princípio de recrutamento entre cidadãos livres, base dos exércitos nacionais criados ao longo do século XIX, e o princípio de promoção na carreira militar em função da formação técnica e do mérito pessoal entravam em choque com o mundo da Monarquia brasileira, onde imperavam a escravidão e o clientelismo no qual, para subir na  oara subir na carreira militar, manter boas relações com a nobreza era mais importante do que o valor e o mérito individuais.

            Foram estes grupos, ao lado de líderes republicanos populares, como Silva Jardim e Lopes Trovão, que ajudaram a desgastar politicamente a imagem da Monarquia junto à sociedade. Quando foi derrubada pelo golpe liderado por Deodoro da Fonseca, a Monarquia já era um regime que tinha perdido apoios fundamentais entre as elites civis e militares. Já não havia ninguém para defendê-la de maneira vigorosa, a não ser alguns poucos senhores de escravos extremamente conservadores, principalmente da outrora importante região do vale do Paraíba (sp/rj). A resignação do velho imperador ao rumar para o exílio dourado em Paris, sem esboçar grande reação ao golpe de Estado, é o melhor retrato da deterioração do antigo regime. Até Pedro li parecia estar cansado da Monarquia.

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