quarta-feira, 10 de maio de 2017

VOO NOTURNO - PARTE 3

Quando os dez minutos da escala terminaram, Fabien teve de partir.
            Observou Saint Julien: não era nada além de um punhado de luzes, depois de estrelas; logo se dissipou a poeira que o tentou pela última vez.
             
            “Não vejo mais os mostradores: Vou acender as luzes.”
            Ele acendeu, mas as lâmpadas vermelhas da carlinga projetaram, em direção às agulhas, uma luz ainda tão diluída no azul que não conseguia iluminá-las. Passou os dedos em uma lâmpada: eles mal ficaram avermelhados.
            “Muito cedo.”
            No entanto, a noite crescia e, como uma fumaça escura, já enchia os vales. Não se distinguiam mais estes das planícies. Mas as cidadezinhas já acendiam as luzes e as constelações respondiam umas às outras. Da mesma forma, também ele, com o dedo, fazia piscar suas luzes de posição, respondendo aos vilarejos. A terra estava repleta de apelos luminosos, cada casa acendendo sua estrela diante da noite imensa, da mesma maneira que um farol se volta na direção do mar. Tudo o que abrigava uma vida humana já brilhava. Fabien admirou-se ao perceber que a chegada da noite desta vez foi semelhante à entrada em uma enseada: lenta e bela.
            Enfiou a cabeça na carlinga. As agulhas da balestilha1 começavam a brilhar. Verificou os números um após outro e ficou satisfeito. Descobriu-se solidamente sentado sobre o céu. Tocou com o dedo uma viga de aço e sentiu a vida jorrar dentro do metal: o metal não vibrava, vivia. Os quinhentos cavalos do motor faziam nascer na matéria uma corrente muito suave que transformava o gelo em carne aveludada. Uma vez mais o piloto não experimentava, ao voar, nem vertigem, nem embriaguez, mas o trabalho misterioso de um corpo vivo.
            Agora, havia recomposto seu mundo e ajeitava-se para se instalar nele com comodidade.
            Deu leves batidinhas no quadro de distribuição elétrica, tocou os contatos um a um, mexeu-se um pouco, recostou-se mais confortavelmente e procurou a melhor posição para sentir o balanço das cinco toneladas de metal que uma noite movediça carregava. Em seguida, tateando, colocou no lugar a lâmpada de emergência, abandonou-a, tornou a tocá-la para assegurar-se de que ela não escorregaria, deixou-a novamente, para bater de leve em cada alavanca, ajustando-as com segurança e instruindo seus dedos para um mundo cego. Então, quando já os sente bem adestrados, permite-se acender uma lâmpada e decora sua carlinga de instrumentos precisos, vigiando por meio do painel somente a entrada na noite, como se fosse um mergulho. Em seguida, como nada vacilava, vibrava ou tremia, e o giroscópio, o altímetro e o regime do motor permaneciam fixos, espreguiçou-se um pouco, apoiou a nuca no couro do assento e iniciou profunda meditação do voo, na qual se saboreia uma esperança inexplicável.
            Agora, no coração da noite, como um vigia, descobre o que a noite revela ao homem: esses apelos, essas luzes, essas inquietações. Essa simples estrela na escuridão: o isolamento de uma casa. Uma se apaga: é um lar que se fecha no seu amor.
            Ou no seu tédio. É uma casa que cessa de sinalizar para o resto do mundo. Os camponeses, sentados à mesa diante de uma lamparina, não sabem o que os espera: ignoram que seu desejo vá tão longe, na grande noite que os rodeia. Mas Fabien descobre o seu alcance quando - depois de percorrer mil quilômetros - sente que profundas ondas fazem erguer e descer o avião que respira; depois de atravessar dez tempestades, como países em guerra e, entre elas, vislumbrar clareiras de luar; e, ainda, quando finalmente alcança essas luzes, uma após a outra, com o sentimento de vitória. Esses homens acreditam que sua lamparina brilha para sua humilde mesa, mas, a oitenta quilômetros de distância, alguém sente o brilho dessa luz, como se, desesperados, eles a balançassem de uma ilha deserta, diante do mar.
             

            1 - Instrumento usado pelos navegadores para medir a altura dos astros. (N.T.) 


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