Nenhum texto traduz tão bem os sentimentos e a
personalidade de Saint-Exupéry quanto o relato da inigualável coragem de Guillaumet
em seu acidente aéreo nos Andes, em pleno inverno sul-americano. Após seu
salvamento, Antoine correu para abraçá-lo e ouvir sua primeira frase
inteligível: “O que eu fiz, te juro que nenhum animal teria feito”.
De toda a literatura francesa, a frase é uma das mais
repetidas, um clássico que resume a convicção do autor de que o homem está na
terra para superar a natureza e ultrapassar os próprios limites. Fossem quais
fossem as qualidades profissionais de Guillaumet, no fundo ele era um homem
simples e modesto, que não estava predestinado a se sobressair. Após o relato
de Saint-Exupéry sobre seu acidente nos Andes, com justa razão passou a ser considerado
por várias gerações uma figura exemplar nos âmbitos humano e moral, bem como um
modelo de valentia e determinação.
Terra dos Homens, que proclama que o homem pode vencer as
mais atrozes adversidades, iluminaria como um farol uma França entristecida
pela derrota de junho de 1940. Nos campos de prisioneiros de guerra, nos quais
havia 1,5 milhão de franceses desesperados, a aterrorizante aventura de
Guillaumet traduzia uma fabulosa mensagem, a de que a salvação pode surgir das
profundezas da noite.
O sóbrio relato feito por Saint-Exupéry sobre a
ressurreição de Guillaumet e as lágrimas que rolaram espontaneamente quando os
dois homens se abraçaram com alívio, não é apenas um trecho literário
comovente. Também é um excelente exemplo de reportagem, tão exato quanto
preciso, escrito cerca de dez anos após o acontecimento. Há muito tempo
Saint-Exupéry adquirira o hábito de fazer anotações detalhadas, e isso explica
por que a maior parte do relato está escrita na primeira pessoa. Ele passou
horas à cabeceira do amigo, escutando seu monólogo entrecortado por sonos perturbados
por terríveis pesadelos.
Também leu o relatório oficial redigido por Guillaumet
alguns dias após a provação que durara uma semana. Numa carta, ilustrada com
uma caricatura de Guillaumet de pé no cume de uma montanha, Saint-Exupéry
qualifica o relatório de “assombroso” e sugere que o amigo se candidate a uma
vaga na Academia Francesa.
Esse relatório, embora não tenha as qualidades literárias
de Terra dos Homens, contém uma quantidade de informações ignoradas por
Saint-Exupéry, que prefere frisar mais a resistência humana que o lado
dramático da aventura. É evidente que Guillaumet não tinha nenhuma intenção de
brincar com as emoções, mas a sobriedade de sua versão é tão emocionante quanto
o relato de Terra dos Homens. Por mais incrível que possa parecer, o voo da
sexta-feira 13 de junho de 1930 era a 92a travessia dos Andes
efetuada por Guillaumet. Apesar da necessidade de ir em busca de correntes
ascendentes para os aviões poderem sobrevoar as montanhas de mais de 7.000
metros, Guillaumet, como era um piloto muito experiente, só sofrera dois
acidentes sérios durante a rotina do transporte do correio de Santiago do Chile
a Buenos Aires.
Nesse caso, é preciso prestar homenagem tanto às suas
extraordinárias qualidades de aviador quanto à força do Potez 25, biplano com o
cockpit aberto, que era o cavalo de tiro desse itinerário. Guillaumet, que
voava sozinho, estava convencido de que as qualidades do avião tinham salvado
sua vida numa viagem anterior, num dia tão frio que a máquina inteira, sacudida
por uma tempestade de neve, tinha sido recoberta por uma camada de gelo. O
aparelho também costumava mergulhar diversos milhares de metros nas zonas de
turbulência, às vezes de cabeça para baixo, porém Guillaumet considerava que
esse tipo de incidente fazia parte da rotina de um piloto de correio.
No entanto, no dia 12 de julho, ele se rendeu diante de
uma violenta tempestade de neve e deu meia volta 70 minutos após ter decolado
de Santiago, pois sua rota habitual acima dos Andes estava obstruída por nuvens
de gelo impenetráveis. No dia seguinte, decolou às 8 horas da manhã,
esforçando-se para ignorar a superstição. O único acidente que sofrera, quando
ainda estava no exército, ocorrera numa sexta-feira 13. As nuvens de gelo
bloquearam novamente sua rota normal sobre as montanhas e, após uma vã batalha
de mais de três horas e meia contra o vento, foi obrigado a fazer um pouso de
emergência nas margens da lagoa Diamant. Na véspera, um caçador lhe contara que
as margens da lagoa eram firmes e tinham sido poupadas pela neve. Ele conseguiu
aterrissar, porém as rodas bateram contra um monte de neve e o avião capotou.
Nas 38 horas seguintes, no meio da tempestade, Guillaumet
procurou abrigo na fuselagem, enrolado num para-quedas. Durante duas noites
ficou obcecado pelas imagens de um romance sobre o Alasca que acabara de ler, Le
Grand Silence Blanc. Às 2 horas da madrugada de domingo o vento e a neve
cessaram, e ele viu o reflexo da lua na lagoa gelada. Sete horas mais tarde,
ouviu um avião dar uma volta pelo céu, porém seus sinais de socorro não foram
avistados. A fuselagem prateada e a fumaça cinzenta dos fogos confundiam-se com
a paisagem e tornavam-se invisíveis a partir do céu.
“Eu tinha uma chance, só uma, porém sabia que para
tentá-la teria de atravessar a pé e sem nenhum equipamento uma garganta de
4.200 metros de altitude”, escreveu Guillaumet no relatório. “Não tinha
qualquer noção de alpinismo, pois nunca o praticara antes dessa aventura. No
entanto, decidi começar a andar. Não sei o que teria feito se tivesse podido
imaginar os sofrimentos morais e físicos que me aguardavam.”
Numa valise colocou meia garrafa de rum, leite
condensado, latas de sardinha e de corned-beef e um pequeno aquecedor a nafta.
Uma bússola de bolso e uma tocha eram seus únicos instrumentos de orientação.
Antes de partir, escreveu com uma pedra uma mensagem sobre o avião acidentado:
“Como o avião não foi encontrado, estou partindo em direção leste. Adeus para
todos. Meu último pensamento será para minha esposa”.
Às 10 da manhã do domingo 15 de junho, iniciou uma longa
marcha forçada de cinco dias, sem dormir, até a quinta-feira 19 de junho. Desde
o princípio, ao iniciar a subida na neve que chegava à altura de 3 metros, sua
coragem foi submetida a uma rude prova. Seu único alimento consistia num pouco
de neve fervida e leite condensado, pois o resto dos mantimentos estavam tão
congelados que não podiam ser comidos. O abridor de latas seria útil mais tarde,
ao ser usado como picareta de neve rudimentar. No primeiro dia, Guillaumet
rolou por uma encosta de 300 metros e só se salvou porque caiu numa neve mais macia.
No segundo dia, recuperou penosamente a distância perdida, quando foi detido
por um pico insuperável. Mais tarde, teve de se desfazer do uniforme de piloto
impregnado de água e muito pesado, bem como das meias.
Cego às vezes pelos turbilhões de neve, Guillaumet
continuava a lutar apesar da ironia cruel dos elementos que se encarniçavam.
Enquanto estava tentando alimentar-se, uma rajada levou uma de suas luvas. O
vento também alimentava falsas esperanças. Diversas vezes ele acreditou estar
ouvindo o canto de um galo ou o apito de um trem, como se a civilização
estivesse se aproximando. Na terça-feira, passou por uma provação ainda pior.
Guillaumet estava seguindo o curso de um pequeno rio e esteve prestes a cair,
cambaleando sobre os rochedos. Sua valise se encheu de água, deteriorando sua
reserva de nafta e seus fósforos. Mesmo andando à noite, com a tocha acesa, não
conseguiu percorrer mais que 3 quilômetros. A neve ficava manchada com o sangue
de seus tornozelos esfolados.
“Essa jornada foi a mais dura de todas”, escreveu, embora
a quarta-feira devesse se transformar mais tarde num pesadelo. Nesse dia, caiu
por um barranco de 50 metros, perdendo a valise com a tocha e os alimentos.
Naquele momento, Guillaumet pensou ter chegado ao limite de sua resistência. A
partir daí, começou a avançar rastejando. Teve de cortar os sapatos, porque
seus pés estavam muito inchados. Finalmente, caiu no rio e foi praticamente
levado pela correnteza. Mais tarde diria aos amigos que encontrara forças para
suportar tudo graças a três pequenas fotos da esposa, Noëlle. “Ao olhar esses
retratos, me enchia de coragem para continuar”, escreveu no relatório. Ao mesmo
tempo, porém, contemplava as ondas rápidas do rio e pensava que seria “tão bom
deixar-se ir suavemente”.
Na quinta-feira estava tão fraco por causa da falta de
alimento e do esgotamento físico que teve de abandonar o sobretudo. Pouco
depois, no momento de ser salvo, pensou que suas últimas esperanças tivessem
desaparecido. Uma camponesa e seu filho ficaram aterrorizados ao verem aquele
louco aparecer na saída de um desfiladeiro e saltaram sobre o cavalo para
fugir.
Guillaumet juntou o resto de suas forças para gritar:
“Sou o aviador perdido — muchos pesos”, e então eles voltaram para socorrê-lo.
Após os primeiros cuidados no único cômodo da casa de seus anfitriões, Guillaumet
estava sendo mandado num carro para a base, quando um avião aterrissou na
estrada. Saint-Exupéry, que sobrevoara incessantemente a montanha, escrutando todos
os desfiladeiros, estava no comando. Guillaumet resumiu laconicamente esse
reencontro numa única frase: “Nosso reencontro foi excessivamente emocionante”.
A bordo do avião encontrava-se o mecânico, Jean-René
Lefebvre, que superara seu temor de acompanhar Saint-Exupéry após suas aventuras
no Saara. O técnico organizou uma operação de socorro por terra para resgatar o
correio transportado por Guillaumet; o aparelho também foi recuperado e levado à
base.
Quanto a Guillaumet, ele resumiu o acidente em seu diário
de bordo nessas poucas palavras: “13 de julho de 1930. Potez N1522.
Santiago/lagoa Diamant. Aterrissagem em plena cordilheira. Capotagem. Violenta
tempestade de neve. Regresso a pé, em 19 de junho”.
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