segunda-feira, 8 de maio de 2017

CIDADELA - PARTE 3

Pois muitas vezes vi a compaixão se enganar. Mas nós que governamos os homens, aprendemos a sondar suas almas, para só dedicar nossa atenção a objeto digno de respeito. Porém essa compaixão, a recuso às feridas de exibição que comovem a alma das mulheres, e também aos moribundos, e aos mortos. E sei bem porquê.
Uma época da minha juventude senti compaixão dos mendigos e das suas úlceras. Contratava curandeiros e comprava bálsamos para eles. As caravanas me traziam de uma ilha longínqua unguento à base de ouro, que voltam a recompor a pele e cicatrizam as chagas. Procedi assim até descobrir que eles tinham como luxo raro aquele insuportável fedor, e os surpreendi a coçar e a regar com esterco aquelas feridas, como quem aduba uma terra para dela extrair a flor cor de púrpura. Mostravam orgulhosamente uns aos outros a sua podridão e se gabavam das esmolas recebidas, pois aquele que mais ganhara se comparava ao sumo-sacerdote que expõe o ídolo mais venerado. Se consentiam em consultar o meu médico, era na esperança de que suas feridas o surpreendessem pela pestilência e pelas proporções. E agitavam os cotos para conquistar um lugar no mundo. Assim, aceitavam os cuidados como uma homenagem, oferecendo seus membros a abluções bajuladoras, mas logo que o mal os deixava, se descobriam sem importância, nada alimentavam que fosse deles próprios, como inúteis, e se ocupavam então a ressuscitar essa úlcera que vivia deles. E, uma vez envoltos de novo no seu mal, gloriosos e vazios, pegavam nas bacias e tornavam a empreender o caminho das caravanas e em nome de seu deus sórdido, voltavam a espoliar os viajantes.

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