As relações que Gabrielle de
Tricaud estabelecia naturalmente entre patrões e empregados denotavam
inegavelmente a segurança de uma aristocrata, mas além disso ela era a
caricatura de um passado que terminara. Embora a Revolução tivesse ocorrido
mais de um século antes, ela considerava que a república era um estado passageiro
em vez de uma mudança radical. Desde 1789 a França conhecera, intermitentemente,
o retorno à realeza dos Bourbons e da família de Orléans, assim como dois
impérios bonapartistas. Só uma disputa sobre a escolha de uma bandeira travou o
retorno da monarquia no final do século, quando a brecha cavada entre
legitimistas e orleanistas foi preenchida pelo pretendente ao trono, conde de
Chambord.
Os
casamentos de conveniência, destinados a proteger bens e títulos, tinham
salvado regularmente as famílias nobres quase arruinadas pelo Terror. Suas
fortunas eram assim restauradas graças aos novos ricos da burguesia industrial,
que podiam oferecer a si mesmos uma aliança aristocrática.
Aos
olhos da nobreza provinciana, a queda da democracia era apenas uma questão de
tempo. Na época do nascimento de Antoine, a República se dilacerava, levada
pelos turbilhões da polêmica sobre o capitão judeu André Dreyfus. Apoiada pela
igreja católica, a aristocracia, despojada de sua autoridade hereditária, viu
nesse escândalo a prova de que uma assembléia popular só podia se autodestruir.
Passara-se bastante tempo e os excessos dos Bourbons tinham sido esquecidos,
restando apenas suas glórias.
A castelã
de Saint-Maurice era reacionária por instinto, orgulhosa dos seus vínculos com
o Antigo Regime, e escolhia amigos que tivessem as mesmas opiniões. Recusava-se
a ler o jornal local, Le Progrès cie Lyon, que considerava muito vanguardista,
lendo em seu lugar Le Nouvelliste, folha pró-monarquista, suscitando assim
indiretamente em seus sobrinhos-netos e netas uma inclinação pela monarquia que
Simone e Gabrielle conservarão durante toda a vida.
Ela
estava totalmente convencida de que possuía um direito hereditário para mandar.
Essa opinião era compartilhada pela maioria dos aldeães que dependiam do
castelo para seus trabalhos diários, os empregados domésticos e meeiros. Poucos
negavam-se a descobrir a cabeça ou a inclinar-se levemente quando a castelã percorria
seus domínios. Ela considerava um direito adquirido o apoio da igreja católica,
e o padre François Montessuy, que se tornara membro honorário da família,
jamais a contradizia. Os ideais conjuntos da fé católica e da monarquia
reencontravam-se em sua capela pessoal, na qual as lajes de mármore eram
decoradas com flores-de-lis, emblema da realeza.
Se
Antoine teve poucas razões para abandonar a religião até os transtornos
ocorridos na sua maturidade, isso se deve sobretudo a François Montessuy, o
primeiro dos padres que influenciaram sua opção. Podia-se pensar que o padre
Montessuy estava a serviço da família, devido ao enorme tempo que passava no
castelo. Na verdade ele era o encarregado da igreja paroquial, na qual a
primeira fileira de bancos estava reservada para a família Saint-Exupéry. A mãe
de Antoine tocava órgão e dirigia o coral das moças da aldeia.
Como
a família tinha relações de amizade com o bispo de Belley, é provável que
Gabrielle de Tricaud tenha influenciado a nomeação do padre Montessuy, que não
se parecia de forma alguma com um padre provinciano comum. Fora professor de
matemática de uma família burguesa, antes de ser obrigado a abandonar
Bourg-en-Bresse por motivos de saúde. Possuía uma vasta cultura, adquirida
durante seus anos de estudo em Paris, onde sofrera o cerco da capital em 1870,
e entendia-se maravilhosamente com as crianças, desempenhando o papel de um tio
indulgente. Assim como Antoine e François, freqüentemente sofria com a
autoridade despótica de tia Gabrielle, e sentiu-se uma vez mortalmente ofendido
quando a castelã insinuou que ele só a visitava para alimentar-se ou beber sua
velha aguardente. Não retornou ao castelo até tia Gabrielle enviar um emissário
ao presbitério.
O
padre Montessuy também conquistou a amizade das crianças graças ao inesgotável
repertório de seus talentos no bilhar, demonstrados na grande mesa da
biblioteca, perto dos amplos armários envidraçados, repletos de livros. Ele
também as acompanhava nos passeios a cavalo ou de charrete em direção aos lagos
de Dombes ou algum outro local pitoresco. Suportava com bom humor suas
brincadeiras e gracejos, chegando um dia a comer um corvo assado que Antoine
queria fazer passar por frango, ignorando sem piscar as gargalhadas das
crianças.
Em
1911, durante uma terrível seca que marcou o primeiro de uma série de verões
tórridos antes da Grande Guerra, o padre forneceu o primeiro modelo à
imaginação fértil de Antoine. Sob a responsabilidade de dois empregados, as
crianças iam se divertir nas margens lamacentas do Ain. Utilizavam argila para
esculpir a cabeça dos numerosos convidados que desfilavam em Saint-Maurice
durante os três meses de férias do verão. Simone lembra-se que a maioria das
esculturas eram reconhecíveis, exceto as do sacerdote, modeladas por Antoine e
enfeitadas com uma barba totalmente fictícia. Ele explicara à irmã que não se
tratava de falta de observação — é que a boca do padre Montessuy tinha uma
forma muito difícil de ser reproduzida.
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