domingo, 28 de maio de 2017

A VIDA DE SAINT-EXUPÉRY - 33


            Durante sua experiência africana, Saint-Exupéry adquiriu consciência da luta do homem contra si mesmo; o deserto e o céu ser viam de pano de fundo para o choque de duas civilizações, nas quais o idealismo e a desilusão opunham-se incessantemente. Nobreza e infâmia mudavam com frequência de campo, e nem árabes nem franceses possuíam o monopólio do bem ou do mal.

            Na América do Sul, os adversários reais chamavam-se clima e Andes. O único desafio verdadeiro era ultrapassar os próprios limites, chegando assim a um nível inigualável de coragem física e intelectual. Guillaumet e Daurat proporcionaram os exemplos mais notáveis de bravura nesses dois campos, mas as experiências pessoais de Saint- Exupéry se comparam às desses seus dois heróis. Acima dos Andes, as correntes de ar erguiam aparelhos e passageiros além da altitude máxima dos aviões modernos, e um efeito similar ocorreu na crescente percepção de Saint-Exupéry sobre a espiritualidade humana.

            Embora tivesse sido nomeado diretor local de tráfego e responsável pelos serviços aéreos no hemisfério sul, na verdade voava mais do que na África, nas mais terríveis condições. Seu talento intuitivo era multiplicado pelo risco, tendo ultrapassado seus próprios limites como Mermoz e Guillaumet. Demonstrava a mesma despreocupação de sempre diante dos maiores perigos, porém nenhuma história ilustra a falta de concentração descrita por Lionel-Max Chassin. Saint- Exupéry dispunha de muito menos tempo para a carreira literária, que era sua principal fonte de distração, porém sua necessidade de escrever não diminuíra.

            Em Voo Noturno, o assistente de Rivière, inspetor Robineau, deve muito de sua falta de autoconfiança ao próprio Saint-Exupéry. Desconfortável em seu papel de chefe que nem sequer tinha o direito de beber com seus pilotos, Robineau replica melancolicamente após uma crítica de Rivière: “[Robineau] renunciou a propor novos métodos e soluções técnicas depois que Rivière escrevera: ‘Solicita-se que o inspetor Robineau nos forneça relatórios, e não poemas’”. Se Saint-Exupéry identificava-se com Robineau, o trecho também contém uma alusão que pode ser considerada uma autocrítica por ter infligido sanções aos colegas. Esperava-se que o inspetor utilizasse seus talentos para estimular o entusiasmo dos membros da companhia, porém “ele lançava-se sobre as fraquezas humanas como se fossem seu pão de cada dia”.

            Em Voo Noturno, o autor recorda as responsabilidades que o obrigam a perseguir o mecânico bêbado, o piloto que erra nas aterrissagens, o chefe inconsciente do aeródromo. Perdoa sua atitude severa com esses homens formulando, por meio de Rivière, um julgamento ambíguo de Robineau: “Ele não é muito inteligente, porém presta importantes serviços”. Segundo a análise do autor, Robineau, aliás, Saint-Exupéry, é um soldado leal pronto para seguir seu general derrotado rumo ao exílio, quando o voo noturno da Patagônia, ao qual se refere o título do livro, se espatifa e ameaça terminar com a carreira de Rivière.

            É possível que Saint-Exupéry tenha considerado muito severo e antipático esse autorretrato, pois mais tarde comentou com o amigo Georges Pélissier que Robineau tinha sido inspirado num inspetor da linha que lhe parecia pomposo e desprezível. O homem havia tomado emprestado amostras geológicas que ele recolhera no deserto e nunca as devolveu.

            Guillaumet, Mermoz e Reine esperavam-no no cais quando chegou a Buenos Aires, e recriaram no Hotel Majestic o mesmo ambiente do hotel do Grand Balcon, em Toulouse. Os escritórios da Aéropostale ficavam perto, na Rua Reconquista, e seu agente mais influente era o diretor técnico argentino Vicente Almandos Almonacid, oficial voluntário na força aérea francesa durante a Primeira Guerra Mundial. Almonacid era um herói nacional, e sem os seus contatos políticos a Aéropostale nunca teria sido autorizada a operar uma rede sul-americana, já que os sentimentos locais eram amplamente pró-alemães. Quatro anos de negociações tinham sido necessários para estabelecer um serviço de correio aéreo com a Europa, o qual abrangia uma conexão atlântica por navio expresso entre o Senegal e Natal, na costa brasileira.

            A falta de apoio do governo francês desanimou Pierre-Georges Latécoère, que, em 1927, cedeu o controle da companhia aérea a um financista francês, Marcel Bouilloux-Lafont. Este se tornou diretor de uma empresa franco-argentina chamada Aeroposta Argentina, filial da Aéropostale. Em 1929, quando Saint-Exupéry assumiu seu cargo, a Aeroposta Argentina realizava voos duas vezes por semana de Buenos Aires a Assunção, no Paraguai, alternando-se com os voos de correio provenientes de Santiago do Chile e do porto brasileiro do Rio de Janeiro. Graças à experiência positiva de Antoine em cabo Juby, além da direção local do tráfego, uma de suas tarefas suplementares seria a inauguração de um serviço regular para a Patagônia e Terra do Fogo, a cerca de 2.500 quilômetros de Buenos Aires.

            Jean Mermoz teve de regressar à França para viabilizar uma ligação por hidravião entre a África e a América, que transformaria a Aéropostale numa companhia aérea internacional tipicamente moderna, na qual a pontualidade e a confiabilidade se tornariam mais importantes que a coragem e a habilidade técnica. Mas os campos de aviação utilizados pelos serviços de correio na Argentina ainda eram tão rudimentares quanto os dos primeiros dias da companhia em Toulouse ou em cabo Juby. Do alto, as grandes extensões dos pampas argentinos tinham a mesma monotonia do deserto do Saara, como Saint-Exupéry descobriu no seu primeiro voo rumo ao sul, para Bahia Blanca, dois dias após sua chegada a Buenos Aires.

            Ao chegar a Bahia Blanca, Saint-Exupéry foi recebido por um piloto argentino, Luro Cambaceres, cujo livro Rumbo 1800, Huellas en Cielo Austral conta minuciosamente a epopeia dos pioneiros da linha da Patagônia. Os dois homens tornaram-se grandes amigos e, alguns meses após seu regresso à França, Antoine escreveu-lhe que nenhum período de sua vida fora tão maravilhoso quanto o que passara na América do Sul. Revia os grandes espaços da Argentina com tal clareza que suas recordações tornavam-se dolorosas. Nesse caso não se tratava de licença poética nem de recriação nostálgica, como no período africano, mas sim de uma sincera saudade dos meses mais intensamente satisfatórios de sua carreira de piloto.

            Em Terra dos Homens, Saint-Exupéry conta pouco de sua experiência nesse período. Explicou a Cambaceres sua reticência em revelar essas emoções confessando que, se um homem tivesse amado loucamente uma mulher e desejasse esquecê-la, era preciso destruir todos os seus retratos. Isso foi o que fez com relação à sua estadia na Argentina.

             Cambaceres era mais generoso quanto aos detalhes, tendo chegado a relatar o voo comercial inaugural entre Buenos Aires e a Patagônia, que realizou com Saint-Exupéry em 30 de outubro de 1929. A paisagem nos arredores da primeira escala, San Antonio Oeste, era lúgubre, e a monotonia só era rompida pelos voos de flamingos rosa nos lagos salgados. San Antonio era pouco mais do que uma aldeia, algumas cabanas de taipa no meio das dunas de areia. Mas a escala seguinte, em Trelew, à margem do golfo de San Matias, estava situada no centro de uma região de culturas agrícolas e frutícolas. Era uma cidade de desenvolvimento recente, protegida dos ventos violentos do planalto patagônico que quase destruíram o avião de Saint-Exupéry numa viagem posterior. A próxima etapa, Comodoro Rivadavia, era ainda mais feia. Tratava-se de uma base de exploração de petróleo em expansão, rodeada de torres de petróleo, onde 10 mil operários viviam numa atmosfera semelhante à da corrida do ouro, e cuja rua principal era bordejada de saloons e bordéis. As praias vizinhas fervilhavam de focas e morsas; Saint-Exupéry capturou um bebê foca e levou-o consigo para Buenos Aires sentado sobre as sacolas do correio.

            Depois de Cambaceres ter realizado a fiscalização dos campos de pouso até o cabo Horn, Saint-Exupéry realizou o voo completo até a Terra do Fogo. Ajudado no regresso por fortes ventos favoráveis, percorreu os 2.500 quilômetros da Patagônia a Buenos Aires no mesmo dia, num de seus numerosos voos-maratona de mais de dezoito horas. Grande parte da viagem foi feita no escuro, deixando-lhe a imagem de uma paisagem irreal, descrita em Voo Noturno como um país de pedras e luar.

            Em fevereiro de 1930, quando os campos de aviação rudimentares foram equipados com hangares de madeira e cabines para rádio, instaurou-se um serviço semanal para a parte mais meridional do mundo habitado. Na maior parte do tempo os pilotos voavam em terríveis condições climáticas, principalmente por causa dos ventos violentos. Eles constituíam um obstáculo cotidiano previsível a ser enfrentado pelos pilotos, para não serem multados por atraso. No entanto, em Comodoro Rivadavia havia um painel proibindo os pilotos de viajar para a base quando as borrascas ultrapassassem 150 quilômetros por hora.

            Após uma batalha de Saint-Exupéry contra a tempestade ao longo de Trelew, quando o vento chegou a quase 200 quilômetros por hora e praticamente arrancou as asas do Latécoère, foi preciso chamar 120 soldados para colocar o avião embaixo de um hangar. Demoraram mais de hora para realizar a operação.

            Pelo menos duas vezes, Saint-Exupéry foi advertido por sua excentricidade. Quando estava no comando de um Latécoère 28, com nove passageiros a bordo, foi obrigado a pousar por causa de um temporal. Seus passageiros, membros de um grupo de teatro, ficaram encharcados até os ossos quando tiveram de correr até a aldeia mais próxima para se abrigarem da chuva. Quando o avião aterrissou em Buenos Aires, após ter sido considerado desaparecido por mais de 24 horas, as vigias estavam enfeitadas com roupas íntimas femininas que tinham sido colocadas ali para secar, e os passageiros desceram vestidos com trajes exóticos, alguns deles com roupas de vaqueiro compradas durante a escala. Saint-Exupéry estava de chinelos e coberto de lama. Seu sorriso satisfeito exasperou tanto o diretor da base que este ameaçou mandá-lo de volta à França por “ter feito papel de palhaço”.

            Durante uma missão até a fronteira com o Uruguai fez uma bravata ainda mais perigosa; tinha vindo pegar o correio enviado por via terrestre do Brasil, quando o tráfego aéreo foi interrompido por causa de uma revolução. Ao decolar de uma pista precária, o avião sobrecarregado se enganchou numa cerca de arame farpado e caiu no chão. O choque fez saltar os rebites que prendiam a cabine à fuselagem de aço ondulado. O ferreiro da aldeia fez uma solda precária, e o cockpit e a traseira do avião soltaram-se novamente durante o voo. Aterrorizado, o encarregado dos contatos pelo rádio contou depois que podia ver claramente o chão pela fissura.

            Ao chegar a Buenos Aires, Saint-Exupéry chamou um mecânico, Raoul Roubes, e comentou-lhe orgulhosamente: “Nada mal, não é?” O operador de rádio, ainda trêmulo, jurou que nunca mais voaria com Saint-Exupéry, sobretudo após ter ouvido Roubes confirmar suas piores suspeitas. “Você deve ser maluco”, disse Roubes. “O avião estava prestes a se quebrar em dois pedaços.”


             


            

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